BREVE ESTUDO DAS ANTINOMIAS OU LACUNAS DE CONFLITO
BATE-BOCA ENVOLVENDO O ART. 931 DO NCC.
A REVISÃO DO CONTRATO NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.
TENDÊNCIAS DO NOVO DIREITO CIVIL.
APLICAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA JUSTIÇA DO TRABALHO.
A FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE E DA PROPRIEDADE E O DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
DIREITO CIVIL E CONSTITUIÇÃO
CORTE DE ENERGIA ELÉTRICA. ANÁLISE SOB O PRISMA “CIVIL- CONSTITUCIONAL”
Uma das questões jurídicas que vem dividindo atualmente os tribunais brasileiros, tanto em sede estadual como o próprio Superior Tribunal de Justiça, relaciona-se com a possibilidade de corte de serviço essencial nos casos de inadimplemento. Fica a dúvida: no caso de falta de pagamento da conta mensal, pode a concessionária de serviço público essencial interromper o mesmo, mediante corte? No tocante ao serviço de energia elétrica, especificamente, dois posicionamentos surgiram em relação ao tema. O primeiro, com o qual concordamos, afasta a possibilidade do corte, tendo em vista a existência de relação de consumo nos casos em questão. Como é notório, o art. 22 da Lei nº 8.078/90 traz regra pela qual os serviços públicos essenciais (água, luz, gás, entre outros) devem ser eficientes e contínuos, não podendo ocorrer qualquer cessação quanto ao seu fornecimento. Em reforço, o art. 42 da mesma Lei Consumerista prevê que, na cobrança de dívidas, não pode o consumidor sofrer coação ou ser exposto ao ridículo, situações que ocorrem de forma cumulada quando da interrupção pelo inadimplemento. O segundo posicionamento possibilita o corte do serviço de energia elétrica quando não houver o respectivo pagamento, pela menção expressa que consta do art. 17 da Lei nº 9.247/96, cuja transcrição é interessante: “A suspensão, por falta de pagamento, do fornecimento de energia elétrica a consumidor que presta serviço público ou essencial à população e cuja atividade sofra prejuízo será comunicada com antecedência de quinze dias ao Poder Público local ou ao Poder Público Estadual. §1º. O Poder Público que receber a comunicação adotará as providências administrativas para preservar a população dos efeitos da suspensão do fornecimento de energia elétrica, inclusive dando publicidade à contingência, sem prejuízo das ações de responsabilização pela falta de pagamento que motivou a medida”. Para balizar essa segunda corrente, muitas vezes, tem-se utilizado o fundamento constitucional de proteção da propriedade e da sua função social (art. 5º, XXII e XXII, CF/88), bem como a manutenção da ordem econômica (art. 170). Pertinente lembrar, nesse sentido, que consta no novo Código Civil proteção expressa quanto à função social da propriedade, no seu art. 1.228, §º1. Na verdade, acreditamos que outros argumentos, também com amparo na seara constitucional, estão balizando a primeira tese, afastando a segunda. Inicialmente, não se pode esquecer que o CDC é norma de principiológica, de ordem pública e interesse social, havendo menção expressa no próprio Texto Maior quanto à proteção dos interesses dos consumidores (art. 5º, XXXII e art. 170, V). Isso coloca a Lei nº 8.078/90 em posição hierarquicamente superior a regulamentação das concessões públicas. Mas outros argumentos, também de fundamento constitucional, podem ser retirados do julgado abaixo, proferido em sede de agravo regimental perante o STJ: “ADMINISTRATIVO. CORTE NO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. AGRAVO REGIMENTAL. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTOS PARA INFIRMAR A DECISÃO AGRAVADA. DESPROVIMENTO. 1. O corte no fornecimento de energia elétrica, como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade e malfere a cláusula pétrea que tutela a dignidade humana. Precedentes do STJ. 2. Ausência de motivos suficientes para a modificação do julgado. Manutenção da decisão agravada. 3. Agravo Regimental desprovido” (Superior Tribunal de Justiça, ACÓRDÃO: AGA 478911/RJ (200201347643), 485333 AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO, DECISÃO: Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Humberto Gomes de Barros e José Delgado votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Francisco Falcão. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Luiz Fux. DATA DA DECISÃO: 06/05/2003. ORGÃO JULGADOR: - PRIMEIRA TURMA. RELATOR: MINISTRO LUIZ FUX FONTE: DJ DATA: 19/05/2003 PG: 00144. VEJA: STJ - RESP 223778-RJ (RSTJ 134/145), AGA 307905-PB (JBCC 186/355), RESP 174085-GO (LEXSTJ VOL.: 00114/239), ROMS 8915-MA) Os fundamentos da decisão acima, são muito fortes, sem dúvidas. Como é notório, o art. 1º, III, da Constituição Federal reconhece a dignidade da pessoa humana como cláusula pétrea, um dos fundamentos da República Brasileira. Apesar da falta de menção no julgado, entendemos que um outro princípio constitucional poderia ser citado, o da solidariedade social, pela busca de uma sociedade mais justa e solidária (art. 3º, I, da CF/88). Desse modo, concordando com a excelência da r. decisão, entendemos que a empresa concessionária não poderá interromper o serviço, mas sim apenas procurar os meios judiciais para cobrar o valor devido, inclusive com a penhora de bens do consumidor que não honra com as suas obrigações. Sobra a amplitude de aplicação desses preceitos, lembra Gustavo Tepedino que “o constituinte de 1988, não satisfeito em fixar normas gerais em cada capítulo, deu-se ao trabalho de estabelecer regras precedentes (até mesmo no ponto de vista da localização topográfica) a todas as outras, que definem a tábua de valores do ordenamento jurídico brasileiro. Tais normas constitucionais, em particular aquelas dispostas nos arts. 1º a 4º, são os preceitos fundamentais da ordem jurídica e, portanto, as mais importantes do ponto de vista interpretativo, a menos que se quisesse atribuir ao constituinte o papel de dispor de palavras inúteis, ou ociosas – o que seria tecnicamente um absurdo” (Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2ª Edição, p. 207). Concluindo, entendemos que, sob o prisma civil-constitucinal o corte não pode ser deferido, sob pena de entrar em colisão com a própria concepção do ordenamento jurídico, quebrando a “espinha dorsal” do Direito Privado.
O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA EM MATÉRIA CONTRATUAL. APONTAMENTOS EM RELAÇÃO AO NOVO CÓDIGO CIVL E VISÃO DO PROJETO Nº 6.960/02
CONCEPÇÃO DOGMÁTICA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE. ANÁLISE SOB O PRISMA PESSOAL E PATRIMONIAL. A IMPENHORABILIDADE DO IMÓVEL EM QUE RESIDE PESSOA SOLTEIRA
Como é notório, o novo Código Civil traz um capítulo específico a tratar dos Direitos da Personalidade, o que para nós não constitui qualquer novidade. Na verdade, o previsto entre os arts. 11 a 21 da novel codificação apenas reafirma a proteção da pessoa natural consolidada na Constituição Federal, particularmente entre os seus arts. 1º a 5º, que consagram, respectivamente, os princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social e da igualdade “lato sensu”, também denominado princípio da isonomia. Esses, os princípios do Direito Civil Constitucional. Quanto ao tema, Gustavo Tepedino demonstra a existência de duas grandes correntes que procuram justificar a existência dogmática de tal proteção, nos seguintes termos: “o debate que se propõe mostra-se, pois, de grande atualidade, em razão de o Código Civil de 2002 ter dedicado um capítulo específico ao tema, que deve ser interpretado à luz do art. 1º, III, da Constituição Federal. Tem-se como induvidoso que as previsões constitucionais e legislativas, dispersas e casuísticas, não lograram êxito em tutelar de forma exaustiva todas as manifestações da personalidade. Diante disso, tornam-se superadas tanto as teorias pluralistas, segundo as quais os chamados direitos de personalidade se encontram tipificados nos textos legislativos, quanto as teorias monistas, que sustentam a existência de um único direito de personalidade, originário e geral, capaz de conter todas as multifacetadas situações existenciais” (Texto de Apoio para o Curso à Distância em “Direito Civil Constitucional”, oferecido pela PUC/MG. Outubro de 2004). Pois bem, com essa breve exposição pretendemos balizar mais ainda as palavras do eminente professor acima transcritas, analisando a questão sob o prisma prático, demonstrando a tendência crescente de “despatrimonialização do direito privado”. Por certo é que, sob o prisma constitucional, os direitos da personalidade não podem estar enquadrados em um rol taxativo de situações. Isso, inclusive, foi reconhecido pelo teor do art. 11 da atual codificação, “in verbis”: “Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”. Como se vê, não traz o comando legal em questão uma série nominada dos direitos da personalidade, afastado, para nós, o atual Código Civil tanto da teoria monista quanto dualista, expostas pelo Professor Tepedino no texto acima. Dessa forma, não há como concordar com a proposta constante do Projeto nº 6.960/20, do Deputado Ricardo Fiúza, pelo qual o citado comando legal ficaria com a seguinte redação: “Art. 11. O direito à vida, à integridade físico-psíquica, à identidade, à honra, à imagem, à liberdade, à opção sexual, à privacidade, e outros reconhecidos à pessoa são inatos, absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, ilimitados, imprescritíveis, impenhoráveis e inexpropriáveis”. Nossa discordância, pertinente frisar, não se dá somente pelo fato da proposta trazer nominalmente os direitos da personalidade, mas também pela questão do comando legal prever características desses direitos, o que não cabe ao texto da lei ordinária, mas ao Texto Maior, variável a sua interpretação pelo estudioso ou aplicador do Direito. O próprio Deputado Ricardo Fiúza demonstra, em comentários ao Projeto nº 6.960/02, que algumas entidades representativas não concordam com tal alteração, caso de organização religiosa que enviou carta fundamentada ao parlamentar, repudiando o fato da proposta trazer a expressão “opção sexual”, reconhecida como direito inerente à pessoa humana (O Novo Código Civil E As Propostas de Aperfeiçoamento. São Paulo: Editora Saraiva, 1ª Edição, 2003, p. 39). Em sintonia com essa tendência de ampliação, percebe-se atualmente que o rol dos direitos da personalidade ganha um outro cunho, recebendo a matéria um tratamento específico em dispositivos legais que regulamentam direitos de cunho patrimonial. Quanto à essa proteção, que coloca os direitos da personalidade e os direitos patrimoniais no mesmo plano, vale como consulta todo o trabalho doutrinário construído por Luiz Edson Fachin, na sua tão aclamada obra “Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo”, em que é apontada a tendência de “repersonalização” do Direito Privado como um todo (Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001). Sobre o tema, ensina Fachin que “a ‘repersonalização’ do Direito Civil recolhe, com destaque, a partir do texto constitucional, o princípio da dignidade da pessoa humana. Para bem entender os limites propostos à execução à luz do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, têm sentido verificações preliminares. A dignidade da pessoa é princípio fundamental da República Federativa do Brasil. É o que chama de princípio estruturante, constitutivo e indicativo das idéias diretivas básicas de toda a ordem constitucional. Tal princípio ganha concretização por meio de outros princípios e regras constitucionais formando um sistema interno harmônico, e afasta, de pronto, a idéia de predomínio do individualismo atomista no Direito. Aplica-se como leme a todo o ordenamento jurídico nacional compondo-lhe o sentido e fulminando de inconstitucionalidade todo preceito que com ele conflitar. É de um princípio emancipatório que se trata” (Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, cit., p. 190). A proteção do “homestead” e de outros conceitos patrimoniais estão alinhados por LUIZ EDSON FACHIN na obra acima transcrita, em que o autor gaúcho, radicado no Paraná, ensina que a impenhorabilidade do bem de família legal seria uma previsão do Código Civil fora da própria codificação, um “oásis no meio do transcurso”. (Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, cit. pp. 141 a 165). Lembramos que a proteção do bem de família legal, constante na Lei nº 8.009/90, nada mais é que a proteção do direito à moradia, seguindo a tendência de valorização da pessoa, bem como a solidariedade estampada no art. 3º, I, da CF/88. Parece-nos, na realidade, que o Superior Tribunal de Justiça tem adotado a tese do “patrimônio mínimo”, ao reconhecer que o imóvel em que reside pessoa solteira estaria protegido pela impenhorabilidade prevista na Lei nº 8.009/90. Nesse sentido, cumpre transcrever o teor da seguinte ementa: “PROCESSUAL - EXECUÇÃO - IMPENHORABILIDADE - IMÓVEL - RESIDÊNCIA - DEVEDOR SOLTEIRO E SOLITÁRIO - LEI 8.009/90. - A interpretação teleológica do Art. 1º, da Lei 8.009/90, revela que a norma não se limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia. Se assim ocorre, não faz sentido proteger quem vive em grupo e abandonar o indivíduo que sofre o mais doloroso dos sentimentos: a solidão. - É impenhorável, por efeito do preceito contido no Art. 1º da Lei 8.009/90, o imóvel em que reside, sozinho, o devedor celibatário”. (Superior Tribunal de Justiça, ACÓRDÃO: ERESP 182223/SP (199901103606), 479073 EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO RECURSO ESPECIAL DATA DA DECISÃO: 06/02/2002. ORGÃO JULGADOR: - CORTE ESPECIAL RELATOR: MINISTRO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA. RELATOR ACÓRDÃO: MINISTRO HUMBERTO GOMES DE BARROS. FONTE: DJ DATA: 07/04/2003 PG: 00209 REVJUR VOL.: 00306 PG: 00083. VEJA: STJ - RESP 276004-SP (RSTJ 153/273, JBCC 191/215), RESP 57606-MG (RSTJ 81/306), RESP 159851-SP (LEXJTACSP 174/615), RESP 218377-ES (LEXSTJ 136/111, RDR 18/355, RSTJ 143/385)”. Por certo é que, pelo que consta no art. 226 da Constituição Federal, uma pessoa solteira não constituiria uma família, nos exatos termos do sentido legal. Um homem solteiro, como se sabe, não constitui uma entidade familiar decorrente de casamento ou união estável. Na hipótese da pessoa solteira não há, ademais, uma entidade monoparental: entidades formadas por ascendentes e descendentes que dividem o mesmo teto, nos exatos termos da lei; ou parentes que mantém relação entre si caracterizadas pela afetividade, pelo teor do conceito ampliado construído com precisão por Eduardo de Oliveira Leite (Famílias Monoparentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2ª Edição) e de outros que possam surgir eis que as entidades familiares não se enquadram mais em um rol “numerus clausus”, para uma parte considerável da doutrina . Estaria, então, o julgador alterando o conceito de “bem de família”? Parece-nos que sim, estando ampliado o seu conceito para “bem de residência da pessoa natural” ou “bem do patrimônio mínimo”. Pela ementa acima transcrita, compreendemos que o STJ tem entendimento atual pelo qual a impenhorabilidade do bem de família não visa proteger a família em si. O objetivo da proteção é a pessoa humana, a premente necessidade do direito à moradia. Nesse contexto, valoriza-se a dignidade da pessoa humana e a solidariedade social, seguindo a já citada tendência de “respersonalização” do direito civil. A doutrina, ademais, já vem se manifestando com concordância em relação a esse entendimento do STJ, como fazem Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho. Para os jovens baianos “o conceito legal de entidade familiar não poderia ser tão duro, sob pena de se coroarem injustiças”. Assim, seriam “inatacáveis as palavras do culto Min. Luiz Vicente Cernicchiaro: ‘... a Lei n. 8.009/90 não está dirigida a um número de pessoas. Mas à pessoa. Solteira, casada, viúva, desquitada, divorciada, pouco importa. O sentido social da norma busca garantir um teto para cada pessoa. Só essa finalidade, ‘data venia’, põe sobre a mesa a exata extensão da lei. Caso contrário, sacrificar-se-á a interpretação teleológica para prevalecer a insuficiente interpretação literal’” (Novo Curso de Direito Civil. Volume I. São Paulo: Editora Saraiva, 4ª Edição, 2003, p. 290-291). Concordamos integralmente com as palavras acima descritas, em prol da proteção da pessoa, tendência do “novo direito civil” que emerge à luz do Direito Civil Constitucional. Concluindo, esse exemplo comprova que as duas teses dogmáticas quanto aos direitos da personalidade encontram-se totalmente superadas.