A medida do tempo na aplicação de questões de família
Jones Figueirêdo Alves
1. Introdução. A relação entre tempo e direito tem conquistado, cada vez mais interesse nos estudos jurídicos nacionais, não apenas em face de enunciados e temas concernentes, defrontando-se, com maior urgência, como medida eficiente na aplicação adequada do direito.
O direito, enquanto sistema normativo que regula condutas humanas, frequentemente utiliza o tempo como uma de suas variáveis fundamentais. O tempo no direito se manifesta em diversos aspectos, que incluem prescrição, decadência, vigência normativa, temporalidade das decisões judiciais, e a relação entre mudança social e evolução legislativa. Autores como Hans Kelsen e Norberto Bobbio destacaram o papel da temporalidade na estrutura normativa. Para Kelsen, por exemplo, as normas superiores estabelecem os prazos e limites temporais que organizam o funcionamento do direito como um sistema hierárquico.
A relação entre tempo e direito é indispensável porque ambos se retroalimentam. Medidas de urgência, como liminares, que dependem de análises temporais para evitar prejuízos irreparáveis são exemplos significantes. Prazos processuais, que garantem ordem e previsibilidade às partes também importam o tempo como sistema de garantias do processo em sua dimensão temporal.
Tempo e direito se interconectam: A prescrição e a decadência são institutos que demonstram claramente como o direito incorpora o tempo em sua aplicação.
Em sede do direito de família, o tempo influencia não apenas determinados institutos jurídicos; afetam, sobretudo e profundamente os vínculos familiares e, consequentemente, as decisões judiciais.
Nesse último aspecto, sublinham-se, por decisivo: (i) o abandono afetivo, como um período prolongado de ausência ou negligência que pode fundamentar pedidos de reparação civil; (ii) a guarda dos filhos, quando o vínculo que a criança estabelece com um dos pais ou com terceiros ao longo do tempo pode ser decisivo na determinação da guarda, privilegiando o princípio do melhor interesse da criança e, finalmente, (iii) a alienação parental, onde a continuidade no tempo de atos de alienação parental pode impactar gravemente a relação da criança com o genitor alienado, levando a medidas judiciais para reverter essa situação.
Aliás, o STJ tem destacado os efeitos nocivos da alienação parental ao longo do tempo, enfatizando a necessidade de decisões rápidas para evitar danos irreversíveis na relação entre a criança e o genitor alienado. Em decisões sobre alienação parental, o tribunal tem priorizado o princípio da celeridade e determinado a aplicação de medidas urgentes para minimizar os impactos do tempo no afastamento de um dos genitores.
Observe-se, lado outro, que a obrigação de prestar alimentos tem forte conexão com o tempo, a saber de sua conformidade temporal, quanto às alterações no valor da prestação, como coisa julgada meramente formal. O tempo pode levar à revisão dos alimentos, seja por mudança nas necessidades do alimentando ou nas possibilidades do alimentante. No caso dos alimentos transitórios, estes podem ser fixados por prazo determinado, especialmente em casos de separação conjugal, para permitir que o beneficiário reestruture sua vida econômica.
No direito de família, o tempo não é apenas um dado jurídico objetivo (como prazos), mas também um elemento subjetivo e dinâmico, que molda as relações familiares e influencia o julgamento dos conflitos. O equilíbrio entre segurança jurídica e a adaptação às mudanças nas relações familiares exige sensibilidade e atenção à temporalidade de cada caso. Tenha-se, por exemplo, o fato jurídico temporalmente relevante de a convivência prolongada poder levar ao reconhecimento de uma relação de filiação socioafetiva, independentemente de laços biológicos.
Postas estas primeiras reflexões, impede colocar em análise, algumas notas jurisprudenciais de medida do tempo na aplicação de questões de família. Vejamos:
2. Do tempo na união estável. A despeito de a norma silenciar ao tempo de duração para a configuração da união estável, tenha-se que a estabilidade da união reclama uma relação temporal de constância, continua e duradoura, por dicção da própria lei, onde o elemento duração apura-se pela sua devida continuidade. Ou seja, a instituição união estável faz-se entender pela duração do seu tempo em habilidade de perscrutar a continuidade da relação convivencial; tudo a contribuir, destarte, à observância do interesse de constituição da família. De efeito, o elemento duração é essencial à definição da entidade familiar, diante da indispensável estabilidade.
Na doutrina, Flávio Tartuce, por todos, admitindo que a lei não exige prazo mínimo para a constituição da união estável, expõe que “o aplicador do direito deve analisar as circunstâncias do caso concreto para apontar a sua existência ou não”. Nesse passo, salienta que os requisitos nesse contexto, são que a união seja pública, continua e duradoura, além do objetivo de os conviventes estabelecerem uma verdadeira família (animus familiae). (01). De conseguinte, o tempo, como elemento acidental, é indispensável a visibilizar seja essa união duradoura; afigurando-se, pois, um curso temporal de duração a qualificá-la, efetivamente, como duradoura.
De efeito, julgado do STJ aponta a aferição de um tempo hábil necessário para a configuração possível da união estável. Transcreve-se, no que importa:
“(...) 2. Em relação à exigência de estabilidade para configuração da união estável, apesar de não haver previsão de um prazo mínimo, exige a norma que a convivência seja duradoura, em período suficiente a demonstrar a intenção de constituir família, permitindo que se dividam alegrias e tristezas, que se compartilhem dificuldades e projetos de vida, sendo necessário um tempo razoável de relacionamento.
3. Na hipótese, o relacionamento do casal teve um tempo muito exíguo de duração - apenas dois meses de namoro, sendo duas semanas em coabitação -, que não permite a configuração da estabilidade necessária para o reconhecimento da união estável. Esta nasce de um ato-fato jurídico: a convivência duradoura com intuito de constituir família(...)”
(STJ – 4ª Turma, REsp 1761887 / MS, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. em 06.08.2019)
O e. relator em aptidão do tema, discorrendo a respeito, assinalou:
(..) Tenho que não houve a convivência necessária para a configuração da união estável e a reiteração do comportamento dos partícipes como casal. Houve, sim, namoro de dois meses de duração com coabitação de duas semanas, que, a meu juízo, não se mostra duradouro o suficiente para evidenciar a estabilidade de um relacionamento como união estável, com comunhão de vida, comprometimento mútuo, planejamento familiar, em nítida convicção de se estar criando uma entidade familiar segura e permanente”.
Com idêntica pertinência, o mesmo STJ impõe um lapso significativo:
“(...) Nessa (na união estável), diversamente, por se tratar de um estado de fato, demanda, para a sua conformação e verificação, a reiteração do comportamento do casal que revele, a um só tempo e de parte à parte, a comunhão integral e irrestrita de vidas e de esforços, de modo público e por lapso significativo (...)” (STJ - REsp n. 1.454.643/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Belizze).
3. Do tempo na partilha dos bens. Eis que permitida a obtenção do divórcio independente da prévia partilha dos bens, a teor do art. 1.581 do Código Civil, cumpre observar de um tempo devido para a partilha, onde todos os bens do ex-casal deverão compor o rol divisível, excluídos os particulares.
O STJ tem assentado que uma vez “decretado o divórcio, com a existência de bens, sem a realização da partilha, subsiste um acervo patrimonial indiviso, cuja natureza jurídica é objeto de controverso debate doutrinário e jurisprudencial. De fato, não há uma uniformidade em relação à definição do conjunto de bens integrantes do acervo partilhável após cessada a sociedade conjugal, isto é, se consiste (i) em estado de mancomunhão ou (ii) instauração de um condomínio, nos termos do artigo 1.314 do Código Civil”.
Nesse contexto, “abstraída a controvertida determinação de sua natureza jurídica ou seu nomen iuris”, importa referir recente e expressivo julgado do Superior Tribunal de Justiça, a dizer que:
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“(...) A partilha consubstancia direito potestativo dos ex-cônjuges relativamente à dissolução de uma universalidade de bens, independentemente da conduta ou vontade do outro sujeito integrante desta relação (sujeito passivo);
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Ausente a configuração de prestação imputável a outra parte - dar, fazer, não fazer -, característica dos direitos subjetivos, não há falar em sujeição a prazos de prescrição.
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O direito à partilha é, portanto, expressão do poder de modificar ou extinguir relações jurídicas por meio de uma declaração judicial, obtida a partir de uma ação de natureza constitutiva negativa (desconstitutiva), à qual a legislação pátria não comina prazo decadencial.
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Na hipótese, inexistentes limites temporais (prescrição ou decadência), afigura-se correto o afastamento da prejudicial de mérito, com a determinação do regular prosseguimento do feito no primeiro grau de jurisdição, âmbito no qual serão analisadas as demais teses defensivas.
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Recurso especial desprovido
(STJ, 4ª Turma, REsp. n. 1817812-SP, Rel. Min. Marxo Buzzi, julgado em 03.09.2024, in DJe de 20.09.2024).
A partilha como ato superveniente, embora podendo ser requerida a qualquer tempo, deve alcançar a sua imediatidade, a prevenir litígios futuros (artigo 648, II, CPC), cumprindo a tanto, observar a regra da máxima igualdade possível quanto ao valor, à natureza e à qualidade dos bens (artigo 648, I, CPC). Recomenda Rafael Calmon que, por isso, "os ex-consortes deveriam passar a titularizar cotas sobre cada um bem componente do acervo comum, à razão de 50%", podendo, assim, qualquer deles alienar tais cotas, observando as regras de extinção do condomínio tradicional (artigo 504, CC). (2) Outrossim, anota-se, que no mesmo iter, a posse e a fruição exclusiva por um só dos ex-consortes renderão ensejo a uma indenização pelo uso privativo do bem comum (STJ — REsp. 178.130-RS, 2002).
Embora não exista prazo para pleitear a partilha, situações específicas podem acarretar efeitos prescricionais indiretos, como os da prescrição de débitos ou créditos internos do casal: Dívidas ou valores que deveriam ser pagos de um cônjuge ao outro podem prescrever, de acordo com o prazo aplicável à obrigação.
4. Do tempo na partilha incontinenti ao divórcio. Cuida o recente projeto de atualização do Código Civil, da partilha dos bens concomitante ao divórcio, em escritura por consenso (art. 1.582-B). Essa formalização de partilha, por escritura, em tempo uno ao divórcio, ao pretexto de possível consenso entre as partes, pode padecer de vícios do consentimento.
Aqui, cumpre refletir sobre a partilha celebrada em situação equipotente ao de estado de perigo. É que uma das partes poderá ter mitigada/prejudicada a sua autonomia de vontade emitindo uma declaração premida emocionalmente pela própria circunstância instante do divórcio, aparentemente consensual. No caso, anuindo a uma partilha manifestamente prejudicial ao justo equilíbrio da divisão dos bens.
5. De outras questões temporais. Noutro giro, não custa lembrar outras notas jurisprudências regulando o tempo de fatos juridicamente relevantes.
5.1. Um dos julgados paradigmas cuida acerca da não comunicabilidade dos bens, uma vez ocorrente a separação de fato:
“(...) 4. A preservação do condomínio patrimonial entre cônjuges após a separação de fato é incompatível com orientação do novo Código Civil que reconhece a união estável estabelecida nesse período, regulada pelo regime da comunhão parcial de bens (CC 1.725). 5. Assim, em regime de comunhão universal, a comunicação de bens e dívidas deve cessar com a ruptura da vida comum, respeitado o direito de meação do patrimônio adquirido na constância da vida conjugal” (STJ – 4ª Turma, REsp. n. 555.771-SP, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. em 18.05.2009)
Admitir a comunicação dos bens adquiridos após a separação de fato implicaria em benefício indevido ao outro e prejuízo considerável para aquele que veio a constituir patrimônio novo com seu próprio e único esforço.
5.2. Na mesma diretiva de adequação temporal aos fatos jurídicos, retenha-se a jurisprudência consolidada quanto à adequação do registro civil de nascimento do filho à situação civil real e atual da sua genitora. Ou seja, a necessária retificação do registro de nascimento, para que o nome da genitora seja alterado, já que, em decorrência do divórcio essa passara a usar, novamente, seu nome de solteira. Tudo em favor da segurança jurídica das relações sociais, do princípio da contemporaneidade e da verdade real.
5.3. Outra importante questão temporal avizinha-se com a futura edição do art. 1700-A, no projeto de atualização do Código Civil, cuidando de determinar que “ocorrendo a morte do devedor e em caso de ser o alimentando também seu herdeiro menor, terá o direito de obter, antes da partilha e a título de antecipação do seu quinhão hereditário, bens suficientes para prover a própria subsistência”.
5.4. Finalmente, a expressão "tempo de convívio" na guarda compartilhada assume relevante expressão jurídica, com seu novo significado (art. 1.583, parágrafo 2º, do Código Civil, conforme a Lei nº 13.058, de 22.12.2014). Mais precisamente, está escrito: "Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos". Mais uma vez, o tempo regendo as questões familiares.
Aponta-se necessária uma contribuição do Direito das Famílias à gestão do tempo familiar, como gestão responsável e instituída para um investimento afetivo adequado.
6. Conclusões:
6.1. A passagem do tempo nas questões familiares impõe severos cuidados com a celeridade processual, sob pena de agravamento dos conflitos. A morosidade judiciária é sério gravame, especialmente em questões que envolvem crianças e adolescentes, para os quais o tempo tem um impacto ainda maior no desenvolvimento emocional e psicológico.
6.2. Impõe-se, destarte, impedir a irreversibilidade em determinadas situações: O tempo prolongado sem solução judicial pode tornar situações irreversíveis, como no caso de guarda provisória que perdura por anos, criando novos vínculos afetivos.
6.3. O equilíbrio entre segurança jurídica e a adaptação às mudanças nas relações familiares exige sensibilidade e atenção à temporalidade de cada caso.
6.4. Afinal, em questões de família, os tempos coexistem nas suas permanências ou nas suas intermitências, tempos de amor ou de desamor, tempos imanentes, essenciais ou memoráveis.
Referências:
(01) TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direito de Família, vol. 5, ed. 2023. Rio de Janeiro: GEN/Editora Forense, p. 343/344.
(02) CALMON, Rafael. “Manual de Partilha de bens (…)”. São Paulo: Saraivajur, 4ª ed., 2023.
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Jones Figueirêdo Alves é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa. Integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Advogado, Consultor e parecerista.
Artigo veiculado na Web: revista “Consultor Jurídico”, de 15.12.2024