CASAL QUER AFASTAR SÚMULA 377
Zeno Veloso.
Publicado no Jornal O Liberal, de Belém do Pará.
Há cerca de um ano João Carlos e Matilde estão namorando. Ele é divorciado, ela é viúva. João fez 71 anos de idade e Matilde tem 60 anos. Resolveram casar-se e procuraram um cartório de registro civil para promover o processo de habilitação. Queriam que o regime de bens do casamento fosse o da separação convencional, pelo qual cada cônjuge é proprietário dos bens que estão no seu nome, tantos dos que já tenha adquirido antes, como dos que vier a adquirir, a qualquer título, na constância da sociedade conjugal, não havendo, assim sendo, comunicação de bens com o outro cônjuge . Mas o funcionário do cartório explicou que, dado o fato de João Carlos ter mais de 70 anos, o regime do casamento tinha de ser o obrigatório, da separação de bens, conforme o art. 1.641, inciso II, do Código Civil, que diz: "É obrigatório o regime da separação de bens no casamento da pessoa maior de setenta anos". Não é necessário que cada um dos nubentes tenha mais de 70 anos. Basta que um deles já esteja nessa situação e a regra legal imperativa e cogente se aplica.
Na sua redação original, o Código Civil estabelecia a obrigatoriedade do regime da separação de bens se algum dos nubentes (ou ambos, é claro) tivesse mais de sessenta anos de idade. A Lei nº 12.344, de 2010, mudou o inciso II do art. 1.641 e aumentou de 60 para 70 anos de idade, a partir da qual o regime de bens do casamento não pode ser escolhido livremente pelos interessados, têm de seguir o da separação de bens, e por isso se chama separação obrigatória
Desconfia o legislador da autenticidade dos amores vespertinos, da sinceridade das paixões crepusculares, suspeitando que há um interesse escuso, de cunho econômico por parte de quem se relaciona amorosamente com um idoso, pretendendo aplicar o que chama o vulgo de "golpe do baú". Daí prever o regime da separação (obrigatória) de bens, com vistas a evitar ou, pelo menos, limitar as possibilidades de lucro ou vantagem do ardiloso.
Mas há quem entenda que tudo isso não passa de preconceito, de uma discriminação com pessoas da terceira idade, generalizando o entendimento equivocado que as imbeciliza. O que tem mais de setenta anos é atingido por uma espécie de "capitis deminutio", uma interdição parcial. E esse inciso II do art. 1.641 afrontaria o princípio da igualdade e o da preservação da dignidade da pessoa humana.Silvio Rodrigues (Direito Civil, v, 6, Direito de Família, 28ª ed., atualizada por Francisco José Cahali, n. 67, p. 144) acha que a imposição do regime da separação se mostra atentatória da liberdade individual, sendo a tutela excessiva do Estado sobre a pessoa maior e capaz descabida e injustificável. Com fina ironia, meu saudoso mestre pondera: "Aliás, talvez se possa dizer que uma das vantagens da fortuna consiste em aumentar os atrativos matrimoniais de quem a detém".
No controle incidental de inconstitucionalidade, no TJ de São Paulo, relator desembargador César Peluso, e no TJ do Rio Grande do Sul, relatora desembargadora Maria Berenice Dias, entendeu-se que a disposição que impunha o regime da separação obrigatória de bens era inconstitucional e foi afastada a sua aplicação do caso concreto. Mas essas decisões, como ocorre no controle difuso, somente se aplicam à questão que foi objeto do julgamento e não têm efeito contra todos ("erga omnes"). Abordo o assunto em meu livro Controle Jurisdicional de Constitucionalidade (3ª ed., Del Rey, Belo Horizonte, n.26, pág.37).
Assim sendo, o casamento de nossos personagens, João Carlos e Matilde, tem de ser e só pode ser pelo regime da separação obrigatória. Entretanto, o oficial do registro informou aos nubentes que, não obstante determinação legal ( do art. 1.641, inciso II, do Código Civil), há a Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal-STF, que a grande maioria da doutrina nacional assegura que se acha em plano vigor, e estatui: "No regime da separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento". A jurisprudência, inclusive no STJ, tem ordenado a aplicação desta Súmula, sem necessidade de ser a aquisição de bens proveniente do esforço comum dos cônjuges, embora este aspecto ainda seja controvertido, havendo quem ache ser necessária a prova do esforço comum.
Mas João Carlos é investidor, atua no mercado imobiliário, adquire bens imóveis, frequentemente, para revendê-los. E Matilde é corretora, de vez em quando compra um bem com a mesma finalidade. Seria um desastre econômico, para ambos, que os bens que fossem adquiridos por cada um depois de seu casamento se comunicassem, isto é, fossem de ambos os cônjuges, por força da Súmula 377/STF. No final das contas, o regime da separação obrigatória, temperado pela referida Súmula, funciona, na prática, como o regime da comunhão parcial de bens.
Foi, então, que me procuraram, pedindo meu parecer. Querem lavrar uma escritura - pacto antenupcial, mencionando que vão casar-se, e o casamento seguirá o regime obrigatório da separação de bens, por força do art. 1.641, inciso II, do Código Civil. Até aí, nada de novo: só estão repetindo o que a lei já diz. Todavia, não querem que, em nenhuma hipótese, haja comunicação de bens, mantendo-se a separação de bens de forma absoluta, em todos e quaisquer casos, sem limitação ou ressalva alguma, excluindo, portanto, expressamente, a aplicação da Súmula 377 do STF. Já dei ao casal a minha opinião: não acho que o enunciado da Súmula seja matéria de ordem pública, represente direito indisponível, e tenha de ser seguida a qualquer custo, irremediavelmente.
Mas há um grupo de jovens e competentes professores brasileiros, que integram a Confraria de Civilistas Contemporâneos, formada por mais de 30 mestres (Tartuce, Mário Delgado, Simão, Toscano, Catalan, Pablo Malheiros, Stolze, para citar alguns), a quem peço um parecer sobre o tema acima exposto. Afinal, podem ou não os nubentes, atingidos pelo art. 1.641, inciso II, do Código Civil, afastar, por escritura pública, a incidência da Súmula 377?