O VALOR JURÍDICO DO AFETO: A ARTE IMITA A VIDA. A PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA E A NOVELA
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O valor jurídico do AFETO: a arte que imita a vida.
Sumário: I – A novela II – O Direito e III – A novela e o Direito.
José Fernando Simão
Mestre e Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Fundação Armando Álvares Penteado- FAAP e do Curso de Especialização da Escola Paulista de Direito. Membro do Instituto dos Advogados de São Paulo, do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, do IDCLB – Instituto de Direito Comparado Luso-brasileiro e do Conselho Editorial do jornal Carta Forense. Professor de Cursos Preparatórios para Concurso Público e Exame de Ordem e de Especialização em várias Faculdades do Brasil. Advogado em São Paulo. Autor da obra Vícios do Produto no novo Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor publicada pela ATLAS. Site: www.professorsimao.com.br
I - A novela.
Confesso que assisto às novelas há bastante tempo. Num esforço hercúleo de memória, lembro-me de, na década de 1980, ter assistido, na pacata cidade de Itapuí, onde ainda reside minha avó, ao último capítulo da novela das 7, Jogo da Vida, em que Renata Fronse (atriz da consagrada Família Trapo) corria pelo Viaduto do Chá, com uma estátua de um cupido cheia de dólares. Na cena final, a estátua se quebrava e as notas verdinhas voavam pelo Viaduto....
De lá pra cá, assisti a muitas novelas, mas confesso que em razão de minhas aulas noturnas no Curso FMB, na Escola Paulista de Direito, palestras na AASP, dentre outros, tenho tido dificuldades para acompanhar as últimas tramas.
Com a novela PÁGINAS DA VIDA não foi diferente. Entretanto, como membro do IBDFAM e estudioso do direito de família, não poderia deixar de acompanhar a novela que se encerrou no último sábado (tema amplamente debatido em nosso Curso de especialização na Toledo de Presidente Prudente).
Manoel Carlos construiu uma trama, como de costume, baseada em personagens estereotipados, no melhor estilo dual: bem de um lado e mal do outro.
De um lado estava o Léo, pobre menino rico, que representava o lado mais sombrio de certa parte da elite brasileira. Rico, irresponsável e egoísta, engravida, quando jovem, sua namorada e depois a abandona de maneira fria e sem remorsos. Detalhe: o abandono se deu no momento em que a namorada declarou-se grávida, pois o rapaz, como seria esperado em razão de sua criação, sugere o aborto como solução do “problema”.
A jovem grávida se socorre de sua família, em especial seu pai, Alex, que lhe dá todo apoio, inclusive financeiro, para que possa levar a termo a gravidez, apesar das veementes críticas da insensível mãe, Marta.
No parto, a jovem vem a falecer e então, surge a surpresa da trama: nascem duas crianças, sendo um menino e uma menina, esta portadora de Síndrome de Down. A avó Marta (vilã da novela) concorda com que a médica que fez o parto, Dra. Helena, fique com a menina e a adote, e, de maneira mentirosa, afirma ao marido Alex que a criança morreu no parto.
Em resumo: a médica adota a menina e a cria num lar de amor e carinho. Também, o avô cuida do menino com dedicação ímpar, acolhendo-o com afeto e total cumplicidade, estabelecendo-se vínculo de amizade.
Após 5 anos do nascimento das crianças, o pai, rico e poderoso, ressurge, como a fênix, das cinzas para exigir os seus direitos sobre os filhos. O pobre rapaz rico faz planos. Quer levar o filho morar no exterior, para lá estudar, aumentar a mansão da família, construindo uma quadra de tênis, re-decorar um dos quartos, para que filho tenha todos os brinquedos que desejar e assim por diante.
No decorrer da trama, consulta um advogado e propõe as demandas investigatórias de paternidade, para, então, ter sua paternidade biológica sobre os dois filhos juridicamente reconhecida. Pretende o rapaz: 1) na demanda proposta contra o avô Alex, ter a guarda do menino Francisco, ou seja, retirá-lo do avô materno que até então o criou, para poder lhe dar uma vida materialmente melhor; 2) na segunda demanda, anular a adoção efetuada pela Dra. Helena, com relação à filha Clara, para ter a guarda sobre a menina também.
Qual foi o desfecho da novela em seu capítulo final? Um embate entre a paternidade biológica e aquela decorrente do afeto.
De um lado, tínhamos Léo, o sujeito que contribuiu apenas com a doação de seu material genético, mero doador de esperma, que, inclusive, mostrou arrependimento após a doação, pois exigiu da namorada o aborto e, quando viu frustrada a sua expectativa, abandonou a jovem, sem sequer se interessar por ela ou pelos seres humanos que gestava. Pai, portanto, apenas biológico. Assim, Francisco e Clara poderiam ser chamados de filhos do DNA.
Por outro lado tínhamos o avô Alex, que se desdobrou material e emocionalmente para dar a Francisco um lar. Criava o menino em harmonia, afeto e carinho, dedicação ímpar. O laço de afeto estabelecido era forte e não precário. Também, Helena educou Clara, com tamanho carinho, que as dificuldades decorrentes da Síndrome de Down foram sendo superadas. Não poupou esforços para achar a escola adequada, abriu mão de seu trabalho para se dedicar à filha, proveu material e emocionalmente a criança visando sempre à sua felicidade.
Tínhamos, então, o avô biológico e a mãe adotiva que forneciam AFETO às crianças, ainda que o primeiro não tivesse a melhor das condições financeiras. No embate entre afeto e biologia (aliada ao poder aquisitivo invejável) não parece fácil tomar uma decisão quanto ao futuro das crianças.
Isso porque o pai Léo se arrependeu do que fez e, lentamente, criou vínculos com o menino Francisco. A adoção de Helena não contou com a concordância do avô e teve por base uma falsa informação de que a menina havia morrido. Poderia a adoção se manter se houve um vício na sua origem, ou seja, a inexistência de concordância do avô?
II – O Direito.
Há muito tempo o direito se pergunta se a parentalidade se resume à relação biológica existente entre seres humanos ou vai além do exame de DNA.
Em 1980, época em que eu iniciava o gosto pelas novelas, o Professor e grande mestre João Baptista Villela, escrevia em seu texto, então revolucionário, DESBIOLOGIZAÇÃO DA PATERNIDADE (Revista Forense, Rio de Janeiro, n. 71, p. 50, 1980) que “o conceito de nascimento já não se contém nos estritos limites da fisiologia e reclama um enfoque mais abrangente, de modo a alcançar, além da emigração do ventre materno, todo o complexo e continuado fenômeno da formação e amadurecimento da personalidade, ou seja, em outros termos, há um nascimento fisiológico e outro emociona”.
Também, o Presidente do IBDFAM Rodrigo da Cunha Pereira afirma que “a simples filiação biológica não é qualquer garantia da experiência da paternidade, da maternidade ou da verdadeira filiação e, portanto, é insuficiente a verdade biológica, pois a filiação é uma construção que abrange muito mais que uma semelhança entre o DNA” (Princípios fundamentais norteadores do direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005).
Por fim, ensina Rolf Madaleno que “o parentesco não é somente um fato da natureza, e sim uma noção social que varia de cultura para cultura e, em verdade, qualquer adulto pode se converter em um pai psicológico, dependendo da qualidade da interação diária, porquanto o verdadeiro pai é aquele que efetivamente se ocupa da função parental” (Direito de família em pauta. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004).
Assim, o parentesco contém elementos biológicos, afetivos e jurídicos.
Criada está a noção de parentalidade socioafetiva e esse é o valor jurídico do afeto. Pai não é, necessariamente, o doador de material genético, mas sim aquele que cria, cuida, ama e se preocupa, perdendo noites de sono com as doenças dos filhos, chorando com seus sucessos e conquistas, e esperando, quem sabe um dia, que em sua velhice, ocorra a retribuição.
A tirania do DNA não pode nem deve prevalecer! A certeza da paternidade biológica pode existir, mas não basta para que saibamos quem efetivamente é o pai.
Se tivesse que escolher entre ser o filho do DNA ou filho do afeto, preferiria o afeto ao material genético.
Nossos Tribunais têm reconhecido o valor jurídico do afeto:
1) “Não há dúvida que sua intenção era deixar seu patrimônio – 50% de uma velha casa de madeira em Canoas – para a enteada que sempre lhe acompanhou. Ademais, de se ver e reconhecer a possível existência de paternidade socioafetiva. Sobre a paternidade socioafetiva, doutrina Luiz Edson Fachin (FACHIN, Luiz Edson. Estabelecimento da filiação e paternidade presumida. Porto Alegre: Fabris, 1992. p. 157, 160, 163) o seguinte: ‘Apresentando-se no universo dos fatos, a posse de estado de filho liga-se à finalidade de trazer para o mundo jurídico uma verdade social. Aproxima-se, assim, a regra jurídica da realidade. Em regra, as qualidades que se exigem que estejam presentes na posse de estado são: publicidade, continuidade e ausência de equívoco... A posse de estado serve para revelar a face socioafetiva da filiação... E no fundamento da posse de estado de filho é possível encontrar a verdadeira paternidade, que reside antes no serviço e no amor que na procriação... Diante do caso concreto, restará ao juiz o mister de julgar a ocorrência ou não de posse de estado’ ”. (TJ/RS, Embargos Infringentes n. 70011650108, Quarto Grupo de Câmaras Cíveis, julgado em 12/08/2005).
2) ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. IMPOSSIBILIDADE. ADOÇÃO AFETIVA. Narrativa da petição inicial demonstra a existência de relação parental. Sendo a filiação um estado social, comprovado estado de filho afetivo, não se justifica a anulação de registro de nascimento por nele não constar o nome do pai biológico. Reconhecimento da paternidade que se deu de forma regular, livre e consciente, mostrando-se a revogação juridicamente impossível. NEGADO PROVIMENTO AO APELO. SEGREDO DE JUSTIÇA (TJ/RS, Apelação Cível n. 70012613139, 7ª Câmara Cível, rel. Maria Berenice Dias, julgado em 16/11/2005).
3) EMENTA: APELAÇÃO. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. AUSÊNCIA DE ERRO. PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA. ALIMENTOS. IMPOSSIBILIDADE NÃO DEMONSTRADA. Não restou demonstrada a alegação de erro substancial no momento em que a paternidade foi registrada. Ademais, com o tempo, restou configurada a paternidade socioafetiva, que prevalece mesmo na ausência de vínculo biológico. Descabe alterar o valor dos alimentos quando não demonstrada a alegada impossibilidade do alimentante em suportá-los. NEGARAM PROVIMENTO. (TJ/RS, Apelação Cível n. 70012504874, Oitava Câmara Cível, rel. Rui Portanova, julgado em 20/10/2005).
Pai é que cria e não quem doa material genético.
III – A novela e o Direito.
O embate entre a biologia e o afeto chegou ao fim. No último capítulo, enquanto o pai biológico se preocupava em fazer reformas na mansão em que morava (“Acho que uma quadra de tênis seria ótima para meus filhos”), os parentes do afeto (Dra. Helena e Alex) sofriam intensamente com a possibilidade de serem privados de seus meninos.
O Tribunal de Justiça fictício, com voto relatado por Eva Wilma, optou pelo afeto em detrimento das provas biológicas de paternidade. Não anulou a adoção de Helena, aplicando o princípio constitucional do melhor interesse da criança, Clara, portadora de Síndrome de Down, nem admitiu que Francisco fosse morar na luxuosa mansão, ou mesmo no exterior como desejava Léo.
Ainda que a mãe adotiva ou o avô fossem detentores de menor poder aquisitivo, mostrou a novela que, em Direito de Família, a expressão “melhores condições” (CC, art. 1584) vai muito além das condições materiais, que, na visão deturpada de certa camada a elite brasileira, resolveria qualquer problema.
O dinheiro não resolve tudo, pelo menos para o Direito de Família.
Privilegiar o afeto foi correto e educativo. Debater o tema com seriedade foi proveitoso à sociedade. Afastamo-nos da noção de ars gratia artes (a arte pela arte) para a idéia de arte como forma de reflexão.
Cabe apenas uma nota, entretanto. Em razão do arrependimento do pai, o pobre menino rico, e de seus sentimentos pelos filhos, caberia, na prática, ao Poder Judiciário ter fixado pelo menos, o direito de visita às crianças, se, em razão dos estudos dos psicólogos e assistentes sociais, ficasse comprovado que isso beneficiaria Francisco e Clara.
A ficção superou, em certos aspectos, a realidade. Reconhecer o valor jurídico do afeto é admitir que os princípios contidos na Constituição Federal efetivamente produzem efeitos sobre a legislação civil como um todo.