QUANDO ENTROU EM VIGOR O NOVO CÓDIGO?
ZENO VELOSO
Uma senhora vivia há mais de dez anos com um homem. Tratava-se de uma união estável, pública, notória, plenamente comprovada. Não houve aquisição de bens durante a convivência dos dois, mas o companheiro era dono de três imóveis, que tinha adquirido antes. O companheiro, ao constituir união estável, era viúvo, e do matrimônio tinha dois filhos.
Vítima de um acidente de trânsito, o homem morreu no dia 11 de janeiro de 2003, sem deixar testamento. A companheira sobrevivente ficou extremamente preocupada, pois os filhos do falecido mandaram-na avisar que saísse imediatamente da casa, que procurasse outra morada, outro rumo, pois eles eram únicos herdeiros do pai, e nutriam por ela profunda antipatia.
A mulher, aflita, procurou um profissional, que deu a seguinte explicação: duas leis regularam o direito sucessórios dos companheiros, a Lei no 8.971, de 1994, e a Lei no 9.278, de 1996. Consoante esta legislação, a companheira teria direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do falecido, considerando que ele deixou descendentes (art. 2o, inciso I, da Lei no 8.971/94), e, além disso, exercerá o direito real de habitação, relativamente ao imóvel destinado à família, ou seja, a casa em que residia com o falecido, direito esse que exerceria enquanto vivesse ou não constituísse nova família ou casamento (art. 7o, parágrafo único, da Lei no 9.278/96).
“Porém, minha senhora”, disse o profissional, e o coração da companheira sobrevivente gelou, na expectativa da má notícia. O homem continuou: a zero hora do 11 de janeiro de 2003 entrou em vigor o novo Código Civil brasileiro, e este regulou de maneira muito limitada a sucessão dos companheiros. O companheiro sobrevivente não tem mais direito real de habitação, e só pode ter algum direito hereditário quanto aos bens adquiridos onerosamente durante a união estável. Enfim, como não foi adquirido bem algum durante a convivência com o companheiro falecido, a companheira não tem direito a casa, a coisa alguma, e, se não tiver lugar para viver, o jeito é ir morar embaixo da ponte.
Apesar da dureza como a resposta foi dada, e as más notícias não devem ser transmitidas tão rude e abruptamente, é isso mesmo, por incrível que pareça, que diz o novo Código Civil, e eu já sugeri ao deputado Ricardo Fiúza – Relator-geral do Projeto de Código Civil – que apresentasse emenda, suavizando aquele tenebroso artigo 1.790 do Código, o que já foi feito. Quem quiser ter acesso às emendas apresentadas por Fiúza, pesquise o Projeto de Lei no 6.069, de 2002.
O novo Código Civil, Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, foi sancionado e promulgado pelo Presidente FHC nesta data, em solenidade no Palácio do Planalto, que tive a honra de assistir. E foi publicado no Diário Oficial da União de 11 de janeiro de 2003. No artigo 2.044, prevê: “Este Código entrará em vigor 1 (um) ano após a sua publicação”. Será que o Código entrou em vigor, mesmo, no dia 11 de janeiro de 2003?
Não se pense que se trata de uma discussão acadêmica, matéria exclusiva de tertúlias universitárias, haja vista o caso concreto que estou contando neste artigo, e muitos outros que ocorreram.
A Lei no 810, de 6 de setembro de 1949, que continua em vigor, define o ano civil, estatuindo no art. 1o: “Considera-se ano o período de doze meses contados do dia do início ao dia e mês correspondentes do ano seguinte”. Como o novo Código Civil, art. 2.044, disse que entraria em vigor um ano após a sua publicação, e como o texto foi publicado no dia 11 de janeiro de 2002, o período de um ano (“vacatio legis”), teria expirado em 11 de janeiro de 2003, e, por essa conta, o Código entrou em vigor e se tornou obrigatório neste referido dia.
Mas vivemos num país campeão mundial de leis. O intérprete tem de ter a máxima atenção, cuidado extremo, para não se perder nesse emaranhado, nesta autêntica babel legislativa. E há a Lei Complementar no 95, de 26 de fevereiro de 1998, que, regulamentando o parágrafo único do artigo 59 da Constituição Federal, dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis. O art. 8o, § 1o, da aludida lei, já com a redação ordenada pela Lei Complementar no 107, de 2001, prevê: “A contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subseqüente a sua consumação integral”. Com base nesse dispositivo, o prazo de “vacatio legis” do Código Civil acabou no dia 11 de janeiro de 2003, e ele entrou em vigor no dia subseqüente, ou seja, em 12 (doze) de janeiro de 2003.
Por este entendimento, nossa personagem livrou-se, por um dia, de ficar na miséria. Vai ser herdeira do companheiro, aplicando-se a legislação anterior, e não o Código Civil. Mas o assunto é polêmico, há opiniões conflitantes: Mário Delgado pensa de uma forma; Maria Helena Diniz de outra. Voltarei ao tema.