Decisão do STF - Inconstitucionalidade do art. 3º, VII, da Lei 8.009/90
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Inconstitucionalidade de artigo de lei federal
afasta a penhora de imóvel familiar para o
pagamento de fiança em locação
(Constitucional - 27.04.2005)
Por Marco Antonio Birnfeld,
editor do Espaço Vital
O imóvel residencial é um bem de família, portanto, impenhorável mesmo que tenha sido dado como garantia à quitação de uma dívida contraída por meio de fiança. A decisão foi tomada, na segunda-feira (25) pelo ministro Carlos Velloso, do STF, ao julgar o recurso extraordinário
interposto por um casal de São Paulo. O precedente seguramente terá reflexos na jurisprudência nacional - ainda que, por ora, tenha sido tomado em decisão monocrática.
Ernesto Gradella Neto e sua mulher Giselda de Fátima recorreram ao Supremo para não ter a casa da família alienada judicialmente para pagamento de dívida. O casal fora fiador em contrato de locação de imóvel.
Ao acolher o recurso do casal, o ministro Carlos Velloso observou que, embora a lei nº 8.245/91 permita a penhora de imóvel de família por "obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação", o artigo 6º da Constituição Federal impede a constrição judicial. Segundo o ministro, esse impedimento se deu a partir da Emenda Constitucional nº 26, promulgada em 14 de fevereiro de 2000, que incluiu a moradia entre os direitos sociais garantidos pela Constituição.
A lei nº 8009/1990 - que inicialmente ficou conhecida como Lei Sarney - foi, na realidade, a promulgação feita, em 20 de março de 1990, pelo então presidente do Senado, Nelson Carneiro - de precedente medida provisória nº 143, de 1990, que o Congresso Nacional aprovou e que fora baixada, em 9 de março daquele ano, pelo então presidente José Sarney.
Pelo texto legal assinado por Sarney, "o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei".
As exceções - isto é, as hipóteses em que a penhora era permitida - eram seis: 1) em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias;
2) pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel; 3) pelo credor de pensão alimentícia; 4) para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar; 5) para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar; 6) por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.
Note-se que o inciso 5 era de nítida proteção às instituições bancárias.
Em 18 de outubro de 1991, o então-presidente Fernando Collor sancionou a lei federal nº 8.245, que dispôs sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes e que teve um artigo incluído por proposição do senador Pedro Simon (PMDB-RS): acrescentou o inciso VII às exceções de penhorabilidade da lei nº 8.009/90, permitindo a constrição judicial do imóvel residencial para garantir o pagamento decorrente de obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
Em decisão proferida na segunda-feira (25) e ontem revelada pelo STF, o ministro Carlos Velloso surpreendeu, positivamente, a Nação ao reportar-se à Emenda Constitucional nº 26/2000 - que tornou não recepcionado o texto, em vigor desde outubro de 1991, que permitia a penhora do imóvel residencial para garantir o pagamento de débitos decorrentes de fianças. Tal, porque "são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, a segurança a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição.”
Em decorrência da decisão, Velloso deu provimento ao recurso extraordinário, liberou a moradia
dos efeitos da penhora e condenou a locadora a pagar os ônus da sucumbência. (RE nº 352.940-4).
Leia a íntegra da decisão do ministro Carlos Velloso
RECORRENTES:ERNESTO GRADELLA NETO E OUTRA
ADVOGADOS:ARISTEU CÉSAR PINTO NETO E OUTRO
RECORRIDA:TERESA CANDIDA DOS SANTOS SILVA
EMENTA: CONSTITUCIONAL. CIVIL. FIADOR: BEM DE FAMÍLIA. IMÓVEL RESIDENCIAL DO CASAL OU DE ENTIDADE
FAMILIAR. IMPENHORABILIDADE.
Lei nº 8.009/90, arts. 1º e 3º. Lei 8.245, de 1991, que acrescentou o inciso VII, ao art. 3º, ressalvando a penhora “por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação”: sua não- recepção pelo art. 6º, C.F., com a redação da EC 26/2000. Aplicabilidade do princípio isonômico e do princípio de hermenêutica: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito.
Recurso extraordinário conhecido e provido.
DECISÃO: "Vistos. O acórdão recorrido, em embargos à execução, proferido pela Quarta Câmara do Eg. Segundo Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, está assim ementado: “A norma constitucional que inclui o direito à moradia entre os sociais (artigo 6º do Estatuto Político da República, texto conforme a Emenda 26, de 14 de fevereiro de 2000) não é imediatamente aplicável, persistindo, portanto, a penhorabilidade do bem de família de fiador de contrato de locação imobiliária urbana.
A imposição constitucional, sem distinção ou condicionamento, de obediência ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada é inarredável, ainda que se cuide, a regra
eventualmente transgressora, de norma de alcance social e de ordem pública.” (Fl. 81).
Daí o RE, interposto por ERNESTO GRADELLA NETO e GISELDA DE FÁTIMA GALVES GRADELLA, fundado no art. 102, III, a, da Constituição Federal, sustentando, em síntese, o seguinte:
a) impenhorabilidade do bem de família do fiador em contrato de locação, dado que o art. 6º da
Constituição Federal, que se configura como auto-aplicável, assegura o direito à moradia, o que
elidiria a aplicação do disposto no art. 3º, VII, da Lei 8.009/90, redação da Lei 8.245/91;
b) inexistência de direito adquirido contra a ordem pública, porquanto “(...) a norma
constitucional apanha situações existentes sob sua égide, ainda que iniciadas no regime
antecedente” (fl. 88).
Admitido o recurso, subiram os autos.
A Procuradoria-Geral da República, em parecer lavrado pela ilustre Subprocuradora-Geral da
República, Drª. Maria Caetana Cintra Santos, opinou pelo não-conhecimento do recurso.
Autos conclusos em 15.10.2004.
Decido.
A Lei 8.009, de 1990, art. 1º, estabelece a impenhorabilidade do imóvel residencial do casal ou
da entidade familiar e determina que não responde o referido imóvel por qualquer tipo de dívida,
salvo nas hipóteses previstas na mesma lei, art. 3º, inciso I a VI.
Acontece que a Lei 8.245, de 18.10.91, acrescentou o inciso VII, a ressalvar a penhora “por
obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.”
É dizer, o bem de família de um fiador em contrato de locação teria sido excluído da
impenhorabilidade.
Acontece que o art. 6º da C.F., com a redação da EC nº 26, de 2000, ficou assim redigido:
“Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, a segurança a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na
forma desta Constituição.”
Em trabalho doutrinário que escrevi “Dos Direitos Sociais na Constituição do Brasil”, texto
básico de palestra que proferi na Universidade de Carlos III, em Madri, Espanha, no Congresso
Internacional de Direito do Trabalho, sob o patrocínio da Universidade Carlos III e da ANAMATRA,
em 10.3.2003, registrei que o direito à moradia, estabelecido no art. 6º, C.F., é um direito
fundamental de 2ª geração - direito social que veio a ser reconhecido pela EC 26, de 2000.
O bem de família - a moradia do homem e sua família - justifica a existência de sua
impenhorabilidade: Lei 8.009/90, art. 1º. Essa impenhorabilidade decorre de constituir a moradia
um direito fundamental.
Posto isso, veja-se a contradição: a Lei 8.245, de 1991, excepcionando o bem de família do
fiador, sujeitou o seu imóvel residencial, imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade
familiar, à penhora. Não há dúvida que ressalva trazida pela Lei 8.245, de 1991, inciso VII do
art. 3º feriu de morte o princípio isonômico, tratando desigualmente situações iguais,
esquecendo-se do velho brocardo latino: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio, ou em
vernáculo: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito.
Isto quer dizer que, tendo em vista o princípio isonômico, o citado dispositivo inciso VII do
art. 3º, acrescentado pela Lei 8.245/91, não foi recebido pela EC 26, de 2000.