Julgado do TJ/SC - Aplicação do art. 927, parágrafo único, do CC a bancos
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Acórdão: Agravo de Instrumento Nº 2003.029706-5/0000-00, de Araranguá.
Relator: Des. Gastaldi Buzzi.
Data da decisão: 11.03.2004.
Publicação: DJSC n. 11.395, edição de 24.03.2004, p. 13.
Agravo de Instrumento 2003.029706-5 Araranguá.
Relator : Des. Gastaldi Buzzi
Juiz(a) : Pedro Aujor Furtado Júnior
Agravante : Vision Informática Ltda.
Advogado : Everson Alessandro Pereira
Agravado : Slengmann Comércio e
Representações Ltda.
Advogado : Antônio Luiz Búrigo
Interessado: Banco Bradesco S/A
Advogados : Milton Baccin e outros
Interessado: HSBC Bank Brasil S/A – Banco Múltiplo
DECISÃO: por votação unânime, conhecer do recurso e dar-lhe provimento. Custas na forma da lei.
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE NULIDADE DE DUPLICATA SEM ACEITE CUMULADA COM PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL - AVERIGUAÇÃO, EM TESE, NO ÂMBITO DE ADMISSIBILIDADE DA DEMANDA, DA VIABILIDADE DE IMPOSIÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL ÀS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS – LEGITIMIDADE PASSIVA DAS CASAS BANCÁRIAS ENDOSSATÁRIAS TRANSLATIVA E MANDATÁRIA - EXAME DA PERTINÊNCIA SUBJETIVA DOS DEMANDADOS SEGUNDO A POSSIBILIDADE, EM ABSTRATO, DOS SUJEITOS DA LIDE SUBMETEREM-SE AOS EFEITOS DA COISA JULGADA - INTERESSE DO BANCO, QUE ADQUIRIU OS TÍTULOS VIA ENDOSSO- TRANSLATÍCIO, EM DEFENDER A LEGALIDADE DA OPERAÇÃO BEM COMO OS DIREITOS EMERGENTES DAS CÁRTULAS - ATIVIDADE DE RISCO DO ENTE BANCÁRIO MANDATÁRIO (TEORIA DO RISCO DE EMPRESA) - LEGIMITIDADE PASSIVA AD CAUSAM DE AMBOS OS BANCOS PRESENTE - RECURSO PROVIDO PARA ADMITI-LOS NO PÓLO PASSIVO DA DEMANDA, SEM PREJUÍZO DO EXAME DE MÉRITO QUANTO À EXISTÊNCIA CONCRETA DE RESPONSABILIDADE CIVIL.
A averiguação da legitimidade ad causam advém da possibilidade, em abstrato, daqueles envolvidos no litígio submeterem-se aos efeitos da coisa julgada, caso proferida sentença de mérito destinada a dirimir o litígio. Logo, a pertinência subjetiva de um e de outro no pólo passivo da
demanda, está subordinada à qualidade sob a qual os demandados intervieram no evento lesivo que desencadeou a pretensão deduzida em juízo.
Em sede de ação declaratória de inexistência de débito, cumulada com pedido indenizatório decorrente de protesto indevido de título de crédito sem lastro, e não abstraído de sua causa subjacente, como o é a duplicata sem aceite, tanto sacador quanto aquele que detém o título e potencializou o protesto da cártula (endossatário/cessionário) dispõem de legitimidade para figurarem no pólo passivo da demanda, uma vez que, in abstrato, têm relação direta com efeitos decorrentes da coisa julgada voltada à solução da lide.
Outra situação é aquela da casa bancária, ou empresas do mesmo ramo de atividade, que atuam como cobradoras de títulos de crédito mediante endosso-mandato, e que, a princípio, não são interessadas diretas na relação de crédito representada pela cártula, desempenhando apenas uma função em nome daquele que, pessoalmente, detém a titularidade dos direitos emergentes do título.
De regra, aquele que recebe a cártula e desempenha o endosso-mandato, para realizar o crédito, não responde pelos prejuízos advindos da implementação dos atos necessários ao exercício da representação que lhe foi conferida.
Todavia, excepcionalmente, é viável a responsabilização civil não apenas quando evidenciada a culpa, mas também nos casos em que ela não ocorre, à vista do desenvolvimento da responsabilidade objetiva. Assim, quando a instituição financeira capta clientes e com eles contrata, dentro de sua atividade fim, a realização de serviços potencialmente nocivos a terceiros, solidariza-se, ao menos em tese, com os seus contratantes, para responder pelos prejuízos decorrentes da prática profissional de risco que desempenha no meio social, vez que, no mínimo, serviu de agente catalisador do pretenso evento lesivo, interessando-lhe defender a regularidade de sua conduta, bem como a ausência de dano a terceiros no exercício desse ofício lucrativo (teoria do risco de empresa - art. 927, parágrafo único, do CC-10.406/02).
No âmbito do ingresso da demanda para nulificação de duplicata emitida sem lastro, cumulada a pedido ressarcitório, não se pode atribuir ao demandante o ônus de identificar, previamente, os detalhes das relações materiais que envolveram aqueles que desencadearam o resultado lesivo sujeito à reparação, e segundo essa necessidade, condicionar a formação do polo passivo da demanda. Assim é porque o exame da legitimação passiva ad causam não perpassa à verificação da procedência ou não do pedido para então retroagir a fim de identificar a pertinência subjetiva dos sujeitos da lide. Em verdade, restringe-se apenas à constatação da possibilidade de submissão dos demandados aos efeitos da coisa julgada, mediante um exame preliminar da conexidade de sua conduta com o litígio posto em discussão judicial.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de agravo de instrumento n. 2003.029706-5, da comarca de Araranguá (2ª Vara Cível), em que é agravante VISION INFORMÁTICA LTDA., sendo agravados SLEGMANN COMÉRCIO E REPRESENTAÇÕES LTDA, BANCO HASBC S/A e BANCO BRADESCO S/A.:
ACORDAM, em Terceira Câmara de Direito Comercial, por votação unânime, conhecer do recurso e dar-lhe provimento.
Custas na forma da lei.
I. RELATÓRIO:
Trata-se de agravo de instrumento interposto por Vision Informática Ltda. contra decisão proferida na ação declaratória de inexistência de dívida c/c indenização de por danos morais n. 004.03.001993-5, proposta contra Slengmann Comércio e Representações Ltda., Banco HSBC S/A e Banco Bradesco S/A, na qual o togado proferiu interlocutório excluindo as instituições financeiras do pólo passivo da demanda, por não possuírem legitimidade ad causam, condenando, conseqüentemente, a autora ao pagamento dos honorários advocatícios dos respectivos patronos em R$ 1.500,00 (um mil e quinhentos reais) para cada.
Afirmou que os agravados respondem solidariamente pelos prejuízos advindos do protesto irregular das cambiais, visto que o primeiro recebeu os títulos por meio de endosso-translativo, através do contrato de mútuo, na forma operacional de desconto de títulos celebrado com a sacadora, tendo o segundo firmado convênio para a cobrança das duplicatas, concluindo, portanto, que ambas detêm legitimidade para figurar no processo.
Pleiteou, ao final, a diminuição dos honorários advocatícios arbitrados pelo julgador, devendo ser fixada a remuneração do causídico em valor condizente com a complexidade do caso e o trabalho realizado pelos advogados dos recorridos.
Não foi apresentada resposta (fl. 38).
II - VOTO:
O recurso deve ser conhecido e provido.
Cuida-se de controvérsia concernente à averiguação da legitimidade passiva ad causam, no bojo de ação declaratória de nulidade de duplicata e cancelamento de protesto por inexistência de relação jurídica subjacente à emissão do título, cumulada com pedido indenizatório por dano material e moral, em que o autor pretende seja reconhecida a ausência de lastro da duplicata sacada contra ele e endossada translativamente em favor de casa bancária que, por meio de outra instituição financeira (endosso impróprio), levou a protesto a cambial, por falta de aceite e pagamento.
Cediço que a averiguação da legitimidade ad causam advém da possibilidade, em abstrato, daqueles envolvidos no litígio submeterem-se aos efeitos da coisa julgada, caso proferida sentença de mérito destinada a dirimir a controvérsia. Logo, a pertinência subjetiva de um e de outro no pólo passivo da demanda, está submetida à qualidade sob a qual os demandados intervieram no evento lesivo que desencadeou a pretensão indenizatória.
Nessa medida, o indigitado sacador e aquele que detém os direitos emergentes do título representativo da obrigação atribuída ao sacado (autor da demanda e alegado pseudo devedor), seja por força de endosso translativo ou caução, ou mesmo, mediante cessão de crédito, são passíveis, em princípio, de sujeitarem-se aos efeitos decorrentes da coisa julgada que resolve a controvérsia sobre a existência ou não do crédito, bem como da responsabilidade civil proveniente dessa situação, daí porque são naturalmente dotados de legitimidade para integrar o pólo passivo da lide.
Enquanto ao sacador aproveita defender a retidão da operação de saque, bem como demonstrar a existência de lastro ao título emitido contra o sacado, de modo a ilidir a pretensão desconstitutiva da obrigação incorporada à cártula, esquivando-se do ressarcimento de eventuais prejuízos decorrentes do protesto da duplicata, à instituição financeira beneficiária dos direitos provenientes do título (via endosso - translativo ou de caução - e/ou cessão de direitos) também cumpre essa mesma missão, de maneira a resguardar seus interesses quanto à validade da obrigação e pretensão de cobrança contra o sacado e endossante, uma vez que no implemento de sua atividade pode impor dadas conseqüências ao primeiro.
Segundo esse contexto, em sede de ação declaratória de inexistência de débito, cumulada com pedido indenizatório decorrente de protesto indevido de título de crédito sem lastro, e não abstraído de sua causa subjacente, como o é a duplicata sem aceite, tanto sacador quanto aquele que detém o título e potencializou o protesto da cártula (endossatário/cessionário) dispõem de legitimidade para figurarem no pólo passivo da demanda, uma vez que, in abstrato, têm relação direta com os efeitos decorrentes da coisa julgada voltada à solução da lide.
Nas palavras da Ministra Nancy Andrighi:
“Se foi o Banco que levou o título a protesto e este causou danos ao autor; se é o Banco o proprietário do título, vez que, beneficiário da operação de endosso-desconto que realizou como emitente da duplicada fria; se é a instituição financeira a detentora da cártula que consubstancia o direito de crédito que buscou cobrar pelo protesto da duplicata, é iniludível que detém legitimidade passiva para responder no pólo passivo da ação de cancelamento de protesto, anulação de título e reparação de danos. Com efeito, tem o Banco interesse próprio em resguardar a validade do título porquanto nele está incorporado o crédito, do qual passou a ser credora, já tendo remunerado o descontante pelo título endossado, tem relação direta com o cancelamento do protesto e, dependendo da dilação probatória, pode ser responsabilizado pelos danos que tenha com sua conduta perpetrado a pessoa física, estranha à relação causal fraudulentamente simulada pelo emitente da duplicada" (AGREsp n. 216.673/MG. Min. Nancy Andrighi. Terceira Turma).
Passado esse ponto, outra situação é aquela da casa bancária, ou outras empresas desse mesmo ramo de atividade, que atuam como cobradoras de títulos de crédito mediante endosso-mandato, e que, a princípio, não são interessadas diretas na relação de crédito representada pela cártula, desempenhando apenas uma função em nome daquele que, pessoalmente, detém a titularidade dos direitos emergentes do título.
De regra, aquele que recebe a cártula e desempenha o endosso-mandato para realizar o crédito, não responde pelos prejuízos advindos da implementação dos atos necessários ao exercício da representação que lhe foi conferida. É bem verdade que, timidamente, existem precedentes jurisprudenciais atribuindo responsabilidade subjetiva ao cobrador, mesmo no cumprimento do mandato, quando, comissiva ou omissivamente, exerce-o abusivamente ou sem a diligência ordinária que lhe competia empregar para pôr em prática esse múnus negocial.
Assim o Colendo Superior Tribunal de Justiça já decidiu, valendo registrar:
“DUPLICATA SEM CAUSA. Protesto. Banco mandatário. O banco que recebe por mandato a incumbência de efetuar a cobrança de duplicatas sem causa, se não demonstrar ter recebido ordem do emitente para levar o título a protesto, responde pelo dano que daí resulta para o terceiro. Recurso não conhecido." (REsp. n. 333913/SP, da 4ª Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, julgado em 02.04.2002).
Ou ainda,
"Agravo. Recurso especial. Endosso-mandato. Protesto. Título pago. Responsabilidade civil. Banco endossatário. Culpa. 1. Responde o banco endossatário-mandatário pelo pagamento de indenização decorrente do protesto de título já quitado, caracterizada nas instâncias ordinárias a negligência do mesmo. 2. Agravo desprovido." (AGREsp n. 434467/PB, 3ª Turma, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, julgado em 08/11/2002)
Nessa medida, ainda é forte o princípio da culpa, segundo o qual "[...] só deveria haver obrigação de reparar danos verificados na pessoa ou em bens alheios quando o agente causador tivesse procedido de forma censurável, isto é, quando fosse exigível dele um comportamento diverso" (NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 434).
Felizmente, ainda que excepcionalmente, a viabilidade da responsabilização civil não opera apenas quando evidenciada a culpa, mas também nos casos em que ela não ocorre, à vista do desenvolvimento da responsabilidade objetiva.
Segundo a doutrina de Fernando Noronha, "A responsabilidade objetiva, ou pelo risco, é a obrigação de reparar danos causados a outrem, que tenha acontecido durante atividades realizadas no interesse ou controle da pessoa responsável e independentemente de qualquer atuação dolosa ou culposa desta[...]. Na vida real, as situações concretas em que nos deparamos com responsabilidade objetiva, podem globalmente consideradas, ser reconduzidas a dois grandes grupos, mesmo que alguns casos fiquem fora deles. De um lado estão os acidentes ocorridos no desenvolvimento de atividades em sim mesmas suscetíveis de criar riscos para outrem e que é costume designar de atividades perigosas. De outro lado estão os danos causados a terceiras pessoas por subordinados e demais agentes que poderiam ser evitados se estes procedessem com os cuidados devidos. Neste caso, a atividade não é perigosa, mas é realizada no interesse da pessoa que acaba sendo responsabilizada" (NORONHA, Fernando. Responsabilidade civil objetiva. Cópia de apostila não publicada. Redação provisória e anterior ao Código Civil vigente p.492/506).
Assim, quando a instituição financeira capta clientes e com eles contrata, dentro de sua atividade fim, a realização de serviços potencialmente nocivos a terceiros, solidariza-se, ao menos em tese, com os seus contratantes, para responder pelos prejuízos decorrentes da prática profissional de risco que desempenha no meio social, vez que, no mínimo, serviu de agente catalisador do pretenso evento lesivo, interessando-lhe defender a regularidade de sua conduta, bem como a ausência de dano a terceiros, no exercício desse ofício lucrativo (teoria do risco de empresa-art.927,§ único, do CC-10.406/02).
Cumpre destacar bem que, no presente momento, o ponto nevrálgico da discussão não está na existência ou não da responsabilidade, ou então, na averiguação de responsabilidades segundo a ótica do contrato de mandato firmado entre a agência mandatária e o seu constituinte, mas sim no risco inerente ao próprio ramo de atuação econômica desenvolvido pelo constituído (casa bancária). Assim, quando ele presta essa espécie de serviço, está implementando uma de suas atividade fim, através da qual aufere ganhos, amplia e consolida mercados e clientelas, distribuindo o risco de sua atividade segundo o preço cobrado para realização dos seus serviços, incumbindo-lhe verificar a legitimidade da operação que executa por meio de medidas eficazes a evitar a imposição de danos a terceiros, assumindo conjuntamente com o seu outorgante os ônus típicos desta especializada atividade que o Estado só concede a selecionados interessados.
Nessa ordem de idéias, a realização do serviço de cobrança de duplicatas sem aceite ou sem comprovante de entrega de mercadorias comporta, sem dúvida, alto risco para as instituições financeiras, e tendo ela optado por sua prestação, sujeita-se, em tese, à responsabilização decorrente dessa atividade, mesmo que, ao tempo de sua imposição (julgamento do mérito) verifique-se descabida, ante a existência de uma excludente ou ausência de nexo de causalidade.
Logo, no âmbito do ingresso da demanda para nulificação de duplicata emitida sem lastro, cumulada a pedido ressarcitório, não se pode atribuir ao demandante o ônus de identificar previamente os detalhes das relações materiais que envolveram aqueles que desencadearam o resultado lesivo sujeito à reparação, e segundo essa necessidade, condicionar a formação do polo passivo da demanda. Assim é porque o exame da legitimação passiva ad causam não perpassa à verificação da procedência ou não do pedido para então retroagir a fim de identificar a pertinência subjetiva dos sujeitos da lide. Em verdade, restringe-se apenas à constatação da possibilidade de submissão dos demandados aos efeitos da coisa julgada, mediante uma exame preliminar da conexidade de sua conduta com o litígio posto em discussão judicial.
Segundo esse raciocínio, para aferição, em abstrato, da viabilidade da tutela visando a reparação de dano causado em função de protesto de duplicata eventualmente sem lastro, cumpre garantir, ao menos no limiar da demanda, a possibilidade máxima de ressarcimento ao pretenso lesionado, em detrimento daqueles que em tese desencadearam o evento lesivo.
Por esse prisma, para o fim de admitir a legitimação passiva ad causam, melhor se amolda a teoria do risco, quando prescreve que "[...] uma pessoa deve incorrer na obrigação de indenizar, mesmo sem ter agido com culpa, sempre que sejam produzidos danos no decurso de atividades realizadas no seu interesse e sob o seu controle. [...] Como se vê, a teoria enfatiza a idéia de risco de atividade. Quem, pela sua atuação, cria o risco de produção de eventuais danos a terceiros, deve reparar aqueles que assim forem causados" (NORONHA, Fernando. Responsabilidade civil objetiva. Cópia de apostila não publicada. Redação provisória e anterior ao Código Civil vigente, p. 506).
Tanto é assim, que o Código Civil vigente (Lei n. 10.406/02), em seu art. 927, parágrafo único, expressamente encampou essa modalidade de responsabilidade, ditando: "Haverá obrigação de reparar o dano, independente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem” (grifou-se).
Nesse contexto, não há dúvida que a cobrança de duplicatas sem aceite ou comprovante de entrega de mercadoria, comporta dúvida inerente à existência de lastro para sua cobrança (risco), dimanando daí, em princípio, a possibilidade de sujeitar-se a agência cobradora, mesmo que tão-somente figurante na qualidade de mandatária, a ressarcir o dano causado ao terceiro, mesmo quando totalmente alheia a essa obrigação, vez que as práticas implementadas para cobrança do crédito, reconhecidamente, podem impingir prejuízos de ordem econômica e moral ao indigitado lesionado.
Por fim, acrescente-se ao que já se disse, o que não importa em adiantar parte do exame do mérito da ação, que a admissão da possibilidade da tutela ressarcitória em relação à agência bancária mandatária utilizada para cobrança (reconhecimento da legitimidade passiva ad causam), revela um sério indício de que os avanços perpetrados no campo do direito cambiário, e da atividade bancária concernente à negociação de títulos de crédito, atrelada aos meios eletrônicos e à informatização desse ramo de atividade, se de um lado traz benefícios, mormente na agilização do comércio cambiário e no barateamento de custos, deve provocar, paralelamente, o desenvolvimento de técnicas eficazes para fiscalização da lisura desses negócios, assim como da legitimidade das operações, antes de inaugurar-se um procedimento de cobrança, que, potencialmente, sem a devida prevenção, pode atingir a uma ou a várias pessoas totalmente alheias à obrigação, acarretando-lhes danos de difícil e incerta reparação, mormente ante aquelas operações negociais largamente utilizadas, que mais se evidenciam na prática cotidiana das agências de crédito ao consumidor.
Ainda citando o professor Fernando Noronha, vale transcrever sua lição quando diz:
“Os conceitos de lucro e de risco são como que o anverso e o reverso, o lado bom e o lado mau de uma mesma medalha: o risco, dizem Alpa e Bessone (1982: 302 e 303], apresenta-se como o aspecto negativo da busca do lucro: ele é todo evento danoso (entendido em sentido amplo) associado ao processo produtivo. [...] Se toda atividade empresarial tem uma função social, se visa satisfazer não só o interesse do empresário como também o bem comum [1.5.3], o objetivo empresarial da obtenção do máximo lucro há de ser subordinado ao interesse geral, de maneira tal que, como dizem Alpa e Bessone [1982:314], o custo social da empresa não reduza a zero os benefícios esperados pela coletividade. É preciso desencorajar as atividades potencialmente danos’, o que, segundo o ítalo-americano Calabresi, conforme citação de Alpa e Bessone, se faz deixando ao mercado a determinação do nível em que (e dos modos em que) se deseja que aquelas atividades sejam exercidas, com desconto do custo. Do mesmo modo, deixa-se aos particulares a liberdade de escolher e empreender estas atividades e suportar o seu custo, inclusive o custo dos acidentes, ou, dados certos custos dos acidentes, empreender atividades mais seguras que, todavia, poderiam ser consideradas menos desejáveis. [...] É nestes termos que o risco de empresa justifica, embora apenas como princípio a observar na interpretação da lei, na integração de suas lacunas e na construção de direito para além da lei [Noronha, 1988: 138, 161], a imposição ao empresário de uma responsabilidade objetiva, cobrindo todos os riscos resultantes de suas atividades, tanto no âmbito interno à empresa como no externo, e tanto por danos causados por empregados e prepostos como por aqueles diretamente resultantes de máquinas, produtos e até matérias-primas" (NORONHA, Fernando. Responsabilidade civil objetiva. Cópia de apostila não publicada. Redação provisória e anterior ao Código Civil vigente, p. 511).
Da mesma forma, ponderando os riscos da atividade, há precedente do Colendo Superior Tribunal de Justiça admitindo a responsabilização, ainda que se cuide do agente financeiro que recebeu o título por endosso translatício:
“DUPLICATA SEM CAUSA. Endosso. Protesto. Responsabilidade do Banco. Deve ser reconhecida a responsabilidade da instituição bancária que recebe para desconto duplicata sem causa e a leva a protesto contra a pessoa que nenhuma relação tem com a sacadora. Quem assim age, sem verificar suficientemente a legitimidade da operação, corre o risco da sua atividade e deve reparar o prejuízo que causa a terceiros. A alegação de que são milhares as operações realizadas diariamente não exime o banco, pois o dano à pessoa atingida continua existindo; a informação, no entanto, serve para mostrar a quantidade de ofensas que são assim praticadas diariamente, a maioria impune. Também não prevalece a escusa de que tinha o banco a necessidade de resguardar seus direitos, porquanto isso não pode se dar à conta e às custas de terceiro que não participa da relação; ele apenas deve Ter ressalvados esses direitos contra o endossante. Recurso conhecido, mas desprovido." (REsp n. 331359/MG, 4ª Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, julgado em 02/04/2002)
Sobre o ponto, mais recentemente, esta colenda Câmara já decidiu:
“Não há como se excluir do pólo passivo de ação que visa a desconstituição de título cambial, à invocação de uma pretensa ilegitimidade ad causam, o estabelecimento bancário que, tendo recebido, de um banco correspondente, duplicata mercantil destituída de causa, a apresenta a protesto." (Apelação Cível n. 2002.015663-4, de Içara. Rel. Des. Trindade dos Santos, j. 12.06.03)
Do exposto, constatada a possibilidade, em abstrato, de atribuir-se responsabilidade pelo evento danoso à casa bancária que recebeu o título por endosso translativo e àquela que exerceu endosso-mandato, é de admiti-las na demanda como legitimadas a figurarem no pólo passivo, não obstante, no mérito, poder-se excluir a responsabilização.
Como as duas instituições financeiras são partes legítimas da demanda, prejudicado exame do pedido de minoração dos honorários advocatícios.
II. DECISÃO:
Nos termos do voto do relator, decidiu a Câmara, por votação unânime, conhecer do recurso e dar-lhe provimento.
Participou do julgamento, com voto vencedor, o Exmo. Desembargador Ronaldo Moritz Martins da Silva.
Florianópolis, 11 de março de 2004.
Fernando Carioni
PRESIDENTE COM VOTO
Marco Aurélio Gastaldi Buzzi
RELATOR