Julgado do STJ - Famoso caso da Favela do Pullman - Função Social da Propriedade (NOVO)
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Acórdão STJ
Data: 21/6/2005 Fonte: 75.659 Localidade: São Paulo
Relator: Aldir Passarinho Junior
Legislação: Arts. 524, 589, 77 e 78 do Código Civil; Súmula nº 7 do STJ; art. 524 do Código Civil anterior, c⁄c o art. 274 do CPC e Constituição Federal de 1988.
Ação reivindicatória. Abandono - recuperação de posse - impedimento. Terrenos de loteamento - área ocupada por favela.
Ementa:
Civil e Processual. Ação Reivindicatória. Terrenos de Loteamento situados em área favelizada. Perecimento do direito de propriedade. Abandono. CC, arts. 524, 589, 77 E 78. Matéria de fato. Reexame. Impossibilidade. Súmula n. 7-STJ. I. O direito de propriedade assegurado no art. 524 do Código Civil anterior não é absoluto, ocorrendo a sua perda em face do abandono de terrenos de loteamento que não chegou a ser concretamente implantado, e que foi paulatinamente favelizado ao longo do tempo, com a desfiguração das frações e arruamento originariamente previstos, consolidada, no local, uma nova realidade social e urbanística, consubstanciando a hipótese prevista nos arts. 589 c⁄c 77 e 78, da mesma lei substantiva. II. “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial” - Súmula n. 7-STJ. III. Recurso especial não conhecido.
Íntegra:
RECURSO ESPECIAL Nº 75.659 - SP (1995⁄0049519-8)
RELATOR: MINISTRO ALDIR PASSARINHO JUNIOR
RECORRENTE: ALDO BARTHOLOMEU E OUTROS
ADVOGADO: ANTÔNIO LUIZ PINTO E SILVA E OUTRO
RECORRIDO: ODAIR PIRES DE PAULA E OUTROS
ADVOGADO: LUIZ FERNANDO S DA RESSURREICAO - DEFENSOR PÚBLICO
EMENTA
CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. TERRENOS DE LOTEAMENTO SITUADOS EM ÁREA FAVELIZADA. PERECIMENTO DO DIREITO DE PROPRIEDADE. ABANDONO. CC, ARTS. 524, 589, 77 E 78. MATÉRIA DE FATO. REEXAME. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N. 7-STJ.
I. O direito de propriedade assegurado no art. 524 do Código Civil anterior não é absoluto, ocorrendo a sua perda em face do abandono de terrenos de loteamento que não chegou a ser concretamente implantado, e que foi paulatinamente favelizado ao longo do tempo, com a desfiguração das frações e arruamento originariamente previstos, consolidada, no local, uma nova realidade social e urbanística, consubstanciando a hipótese prevista nos arts. 589 c⁄c 77 e 78, da mesma lei substantiva.
II. “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial” - Súmula n. 7-STJ.
III. Recurso especial não conhecido.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas,
Decide a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, à unanimidade, não conhecer do recurso, na forma do relatório e notas taquigráficas constantes dos autos, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Participaram do julgamento os Srs. Ministros Jorge Scartezzini, Barros Monteiro, Cesar Asfor Rocha e Fernando Gonçalves.
Custas, como de lei.
Brasília (DF), 21 de junho de 2005(Data do Julgamento)
MINISTRO ALDIR PASSARINHO JUNIOR
Relator
RELATÓRIO
EXMO. SR. MINISTRO ALDIR PASSARINHO JUNIOR:
Inicio pela adoção do relatório de fls. 491⁄492, verbis:
“1- Ação reinvindicatória referente a lotes de terreno ocupados por favela foi julgada procedente pela r. sentença de fls. 420, cujo relatório é adotado, repelida a alegação de usucapião e condenados os réus na desocupação da área, sem direito a retenção por benfeitorias e devendo pagar indenização pela ocupação desde o ajuizamento da demanda. As verbas da sucumbência ficaram subordinadas à condição de beneficiários da assistência judiciária gratuita.
Apelam os sucumbentes pretendendo caracterizar a existência do usucapião urbano, pois incontestavelmente todos se encontram no local há mais de 5 (cinco) anos, e ocupam áreas inferiores a 200 (duzentos) metros quadrados, sendo que não têm outra propriedade imóvel. Subsidiariamente, pretendem o reconhecimento da boa-fé e conseqüentemente direito de retenção por benfeitorias e, alternativamente, ainda, o deslocamento do dies a quo de sua condenação da data da propositura da demanda para a data em que se efetivou a citação.
Os autores contra-arrazoam, levantando preliminar de intempestividade do recurso e, no mérito, pugnando pela manutenção da sentença; e interpõem recurso adesivo, pretendendo a execução imediata das verbas de sucumbência em que foram condenados os réus.
O recurso adesivo também foi respondido.
O relator determinou diligência a respeito da publicação da sentença”.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo deu provimento à apelação dos réus, para julgar improcedente a ação, invertidos os ônus sucumbenciais (fls. 499⁄509).
Opostos embargos declaratórios às fls. 512⁄517, foram eles rejeitados (fls. 526⁄530).
Inconformados, os autores, Aldo Bartholomeu e outros, interpõem, pelas letras “a” e “c” do autorizador constitucional, recurso especial alegando, em síntese, que promoveram a ação reivindicatória com base no art. 524 do Código Civil anterior, c⁄c o art. 274 do CPC, postulando o reconhecimento de seu direito de propriedade sobre vários lotes de terreno e que fosse deferida, sobre eles, a sua posse. Dizem que os lotes foram invadidos pelos réus, ali construindo benfeitorias consistentes em barracos; que alguns dos réus se defenderam alegando prescrição aquisitiva, por se acharem na área há mais de vinte e cinco anos e outros alegaram posse mansa e pacífica há mais de quinze; ainda outros afirmam estar no local há oito anos, imaginando que o terreno era da municipalidade.
Aduzem que o acórdão é nulo, por violação ao art. 2º do CPC, porque embora negando a reivindicatória dos autores e, também, a defesa dos réus sobre a prescrição aquisitiva, deu provimento à apelação destes por fundamentos diversos, qual seja, o perecimento do direito de propriedade e a prevalência da função social da terra, temas não suscitados nos autos.
Salientam que também houve contrariedade ao art. 460 da lei adjetiva civil, pois foi proferida decisão diversa da postulada, além de infringir os arts. 502, 512 e 515, pois apreciou matéria não devolvida ao seu conhecimento.
Quanto ao mérito, sustentam os recorrentes que foi negada vigência ao art. 524 do Código Civil anterior, que assegura aos titulares do domínio o pleno exercício das faculdades a ele inerentes, acentuando que a decisão importa em verdadeira expropriação de bens particulares.
Invocam precedentes paradigmáticos.
Contra-razões às fls. 582⁄589, por Odair Pires de Paula e outros, asserindo que não é obrigado o Tribunal a deliberar segundo a fundamentação apresentada, mas, sim, aplicar o direito aos fatos expostos, o que fez pela decisão calcada em preceito constitucional da função social da propriedade, em face da favelização da área disputada.
O recurso especial foi admitido na instância de origem pelo despacho presidencial de fls. 591⁄600, inadmitido o extraordinário, porém interposto agravo de instrumento ao C. STF.
O processo foi sucessivamente distribuído, no STJ, aos eminentes Ministros Fontes de Alencar, Bueno de Souza e a este relator.
É o relatório.
VOTO
EXMO. SR. MINISTRO ALDIR PASSARINHO JUNIOR (Relator):
Trata-se de ação reivindicatória movida por Aldo Bartholomeu e outros, objetivando o reconhecimento de sua titularidade e obtenção da posse de nove lotes de terreno situados em Santo Amaro, Estado de São Paulo, ocupados por diversas famílias que sobre eles construíram barracos, favelizando a área.
Julgada procedente a ação em 1o grau, a decisão foi reformada em apelação dos réus provida pelo Tribunal de Justiça, em acórdão de relatoria do eminente Desembargador José Osório, assim fundamentado (fls. 501⁄509):
"3 - A alegação da defesa de já haver ocorrido o usucapião social urbano,criado pelo art. 183 da CF⁄88, não procede, porquanto, quando se instaurou a nova ordem constitucional, a ação estava proposta havia três anos.
Ainda assim, o recurso dos réus tem provimento.
4 – Os autores são proprietários de nove lotes de terreno no Loteamento Vila Andrade, subdistrito de Santo Amaro, adquiridos em 1978 e 1979. O loteamento foi inscrito em 1955. A ação reivindicatória foi proposta em 1995.
Segundo se vê do laudo e das fotografias de fls. 310 e s., os nove lotes estão inseridos em uma grande favela, a Favela do Pullman, perto do Shopping Sul, Av. Giovanni Gronchi.
Trata-se de favela consolidada, com ocupação iniciada há cerca de 20 anos. Está dotada, pelo Poder Público, de pelo menos três equipamentos urbanos: água, iluminação pública e luz domiciliar As fotos de fls. 10⁄13 mostram algumas obras de alvenaria, os postes de iluminação, um pobre ateliê de costureira, etc., tudo a revelar uma vida urbana estável, no seu desconforto
5 - O abjeto da ação reivindicatória é, como se sabe uma coisa corpórea, existente e bem definida Veja-se por todos, Lacerda de Almeida:
Coisas corpóreas em sua individualidade, móveis ou imóveis, no todo ou em uma quota-parte, constituem o objeto mais freqüente do domínio, e é no caráter que apresentam de concretas que podem ser reivindicadas (...). (Direito das Coisas, Rio de Janeiro, 1908 p-308)
No caso dos autos, a coisa reivindicada não é concreta, nem mesmo existente. É uma ficção.
Os lotes de terreno reivindicados e o próprio loteamento não passam, há muito tempo, de mera abstração jurídica. A realidade urbana é outra. A favela já tem vida própria, está, repita-se dotada de equipamentos urbanos. Lá vivem muitas centenas, ou milhares, de pessoas. Só nos locais onde existiam os nove lotes reivindicados residem 30 famílias. Lá existe uma outra realidade urbana, com vida própria, com os direitos civis sendo exercitados com naturalidade. O comércio está presente, serviços são prestados, barracos são vendidos, comprados, alugados, tudo a mostrar que o primitivo loteamento hoje só tem vida no papel.
A diligente perita, em hercúleo trabalho, levou cerca de quatro anos para conseguir localizar as duas ruas em que estiveram os lotes, Ruas Alexandre Archipenko e Canto Bonito. Segundo a perita:
A Planta Oficial do Município confronta com a inexistência da implantação da Rua Canto Bonito, a qual foi indicada em tracejado. (fls. 306)."
Na verdade, o loteamento, no local, não chegou a ser efetivamente implantado e ocupado. Ele data de 1955. Onze anos depois, a planta aerofotogramétrica da EMPLASA mostra que os nove lotes estavam cobertos por vegetação arbustiva, a qual também obstruía a rua Alexandre Archipenko (fls. 220). Inexistia qualquer equipamento urbano.
Mais seis anos e a planta seguinte (1973) indica a existência de muitas árvores, duas das quais no leito da rua. Seis barracos já estão presentes.
Essa prova casa-se com o depoimento sereno do Padre Mauro Baptista:
Foi pároco no local até 1973, quando já havia o início da favela do Pullman. Ausentou-se do local até 1979. Quando para lá retornou, encontrou a favela consolidada. (fls. 418).
Por aí se vê que, quando da aquisição, em 1978⁄9, os lotes já compunham a favela.
6 - Loteamento e lotes urbanos são fatos e realidades urbanísticas. Só existem, efetivamente, dentro do contexto urbanístico. Se são tragados por uma favela consolidada, por força de uma certa erosão social deixam de existir como loteamento e como lotes.
A realidade concreta prepondera sobre a pseudo realidade jurídico-cartorária. Esta não pode subsistir, em razão da perda do objeto do direito de propriedade. Se um cataclisma, se uma erosão física, provocada pela natureza, pelo homem ou por ambos, faz perecer o imóvel, perde-se o direito de propriedade.
É o que se vê do art. 589 do Código Civil, com remissão aos arts. 77 e 78.
Segundo o art. 77, perece o direito perecendo o seu objeto. E nos termos do art 78, I e III, entende-se que pereceu o objeto do direito quando perde as qualidades essenciais, ou o valor econômico; e quando fica em lugar de onde não pode ser retirado.
No caso dos autos, os lotes já não apresentam suas qualidades essenciais, pouco ou nada valem no comércio; e não podem ser recuperados, como adiante se verá.
7 – É verdade que a coisa, o terreno, ainda existe fisicamente.
Para o direito, contudo, a existência física da coisa não é o fator decisivo, consoante se verifica dos mencionados incisos I e III do art. 78 do CC. O fundamental é que a coisa seja funcionalmente dirigida a uma finalidade viável, jurídica e economicamente.
Pense-se no que ocorre com a denominada desapropriação indireta. Se o imóvel, rural ou urbano, foi ocupado ilicitamente pela Administração Pública, pode o particular defender-se logo com ações possessórias ou dominiais. Se tarda e ali é construída uma estrada, uma rua, um edifício público, o esbulhado não conseguirá reaver o terreno, o qual, entretanto, continua a ter existência física. Ao particular, só cabe ação indenizatória.
Isto acontece porque o objeto do direito transmudou-se. Já não existe mais, jurídica, econômica e socialmente, aquele fragmento de terra do fundo rústico ou urbano. Existe uma outra coisa, ou seja, uma estrada ou uma rua, etc. Razões econômicas e sociais impedem a recuperação física do antigo imóvel.
Por outras palavras, o jus reivindicandi (art. 524, parte final, do CC) foi suprimido pelas circunstâncias acima apontadas. Essa é a Doutrina e a Jurisprudência consagradas há meio século no direito brasileiro.
8 - No caso dos autos, a retomada física é também inviável.
O desalojamento forçado de trinta famílias, cerca de cem pessoas, todas inseridas na comunidade urbana muito maior da extensa favela, já consolidada, implica uma operação cirúrgica de natureza ético-social, sem anestesia, inteiramente incompatível com a vida e a natureza do Direito.
É uma operação socialmente impossível.
E o que é socialmente impossível é juridicamente impossível.
Ensina L. Recaséns Siches, com apoio explícito em Miguel Reale, que o Direito, como obra humana que é, apresenta sempre três dimensões, a saber:
A) Dimensión de hecho, la cual comprende los hechos humanos sociales en los que el Derecho se gesta y se produce; así como las conductas humanas reales en las quales el Derecho se cumple y lleva a cabo.
B) Dimension normativa (...)
C) Dimension de valor, estimativa, o axiológica, consistente en que sus normas, mediante las cuales se trata de satisfacer una série de necesidades humanas, esto intentan hacerlo con la exigencias de unos valores, de la justicia y de los demás valores que esta implica, entre los que figuran la autonomía de la persona, la seguridad, el bien común y otros.
(...) pero debemos precatarnos de que las tres (dimensiones) se hallan reciprocamente unidas de un modo inescindible, vinculadas por triples nexos de esencial. implicación mutua. (lntroducción al Estudio Del Derecho, México, 1970, p. 45).
Por aí se vê que a dimensão simplesmente normativa do Direito é inseparável do conteúdo ético-social do mesmo, deixando a certeza de que a solução que se revela impossível do ponto de vista social é igualmente impossível do ponto de vista jurídico.
9 - O atual direito positivo brasileiro não comporta o pretendido alcance do poder de reivindicar atribuído ao proprietário pelo art. 524 do CC.
A leitura de todos os textos do CC só pode se fazer à luz dos preceitos constitucionais vigentes. Não se concebe um direito de propriedade que tenha vida em confronto com a Constituição Federal, ou que se desenvolva paralelamente a ela.
As regras legais, como se sabe, se arrumam de forma piramidal.
Ao mesmo tempo em que manteve a propriedade privada, a CF a submeteu ao princípio da função social (arts. 5º, XXII e XXIII; 170, II e III; 182, 2º; 184; 186; etc.).
Esse princípio não significa apenas uma limitação a mais ao direito de propriedade, como, por exemplo, as restrições administrativas, que atuam por força externa àquele direito, em decorrência do poder de polícia da Administração.
O princípio da função social atua no conteúdo do direito. Entre os poderes inerentes ao domínio, previstos no art. 524 do CC (usar, fruir, dispor e reivindicar), o princípio da função social introduz um outro interesse (social) que pode não coincidir com os interesses do proprietário. Veja-se, a esse propósito, José Afonso da Silva, Direito Constitucional Positivos, 5ª ed., p. 249⁄0, com apoio em autores europeus).
Assim, o referido princípio torna o direito de propriedade, de certa forma, conflitivo consigo próprio, cabendo ao Judiciário dar-lhe a necessária e serena eficácia nos litígios graves que lhe são submetidos.
10 - No caso dos autos, o direito de propriedade foi exercitado, pelos autores e por seus antecessores, de forma anti-social. O loteamento - pelo menos no que diz respeito aos nove lotes reivindicandos e suas imediações - ficou praticamente abandonado por mais de 20 (vinte) anos; não foram implantados equipamentos urbanos; em 1973, havia árvores até nas ruas; quando da aquisição dos lotes, em 1978⁄9, a favela já estava consolidada. Em cidade de franca expansão populacional, com problemas gravíssimos de habitação não se pode prestigiar tal comportamento de proprietários.
O jus reivindicandi fica neutralizado pelo princípio constitucional da função social da propriedade. Permanece a eventual pretensão indenizatória em favor dos proprietários, contra quem de direito.
Diante do exposto, é dado provimento ao recurso dos réus para julgar improcedente a ação, invertidos os ônus da sucumbência, e prejudicado o recurso dos autores."
O recurso especial, aviado pelas letras “a” e “c” do permissivo constitucional aponta, além de dissídio jurisprudencial, contrariedade aos arts. 2o, 460, 502, 512 e 515, do CPC, e 524 do Código Civil revogado.
Foi interposto, por igual, recurso extraordinário, atacando a fundamentação de ordem constitucional do aresto objurgado (fls. 536⁄545).
O direito de propriedade é assegurado pela Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XXII, e, à época, vigorando a Carta Política anterior, a mesma regra existia em seu art. 153, § 22.
Corolário dessas normas, se encontra, no Código Civil revogado o art. 524, que reza:
“Art. 524. A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua”.
Ocorre, porém, que também há a considerar, como corretamente acentuou o aresto recorrido, o art. 589 da mesma lei substantiva civil, c⁄c os arts. 77 e 78, I e III, que dispõem:
“Art. 589. Além das causas de extinção consideradas neste Código, também se perde a propriedade imóvel:
....................................................................
III – Pelo abandono.
....................................................................
§ 2º. O imóvel abandonado arrecardar-se-á como bem vago e passará ao domínio do Estado, do Território, ou do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições:
a) 10 (dez) anos depois, quando se tratar de imóvel localizado em zona urbana”.
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Art. 77. Perece o direito, perecendo o seu objeto.
Art. 78. Entende-se que pereceu o objeto do direito:
I – Quando perde as qualidades essenciais, ou o valor econômico.
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III – Quando fica em lugar de onde não pode ser retirado”.
Os elementos fáticos trazidos à colação e explicitados no julgado ora sub judice demonstram, à saciedade, que houve o abandono dos lotes e que estes, na prática, pereceram.
De efeito, consta que o loteamento, de 1955, jamais chegou a ser efetivado. Dez anos depois era um completo matagal, sem qualquer equipamento urbano, portanto inteiramente indefinidos no plano concreto, os lotes dos autores. Iniciou-se, pouco tempo após, a ocupação e favelização do local, solidificada ao longo do tempo, montada uma outra estrutura urbana indiferente ao plano original, como sói acontecer com a ocupação indisciplinada do solo por invasões, obtendo, inclusive, a chancela do Poder Público, que lá instalou luz, água, calçamento e demais infra-estrutura.
Aliás, chama a atenção a circunstância de que até uma das ruas também fora desfigurada, jamais teve papel de via pública (cf. fl. 503).
Assim, quando do ajuizamento da ação reivindicatória, impossível reconhecer, realmente, que os lotes ainda existiam em sua configuração original, resultado do abandono, aliás desde a criação do loteamento. Nesse prisma, perdida a identidade do bem, o seu valor econômico, a sua confusão com outro fracionamento imposto pela favelização, a impossibilidade de sua reinstalação como bem jurídico no contexto atual, tem-se, indubitavelmente, que o caso é, mesmo, de perecimento do direito de propriedade.
É certo que o art. 589, parágrafo 2o, prevê a “arrecadação do bem vago”, mas esse procedimento formal cede à realidade fática. Na prática, e o que interessa ao deslinde da questão, importa verificar se desapareceu ou não e, na espécie, a resposta é afirmativa, no que tange à propriedade dos autores-recorrentes.
De outro lado, o substrato da prova não tem como ser revisto pelo STJ, ao teor da Súmula n. 7, e, como visto, ele se revelou essencial ao embasamento da decisão impugnada, que, em meu entender, bem aplicou à hipótese os arts. 589, 77 e 78 do Código Civil anterior, excepcionando a incidência da regra geral, do art. 524, que, por tais razões, não se pode tê-lo por violado.
Ante o exposto, não conheço do recurso especial.
É como voto.
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
QUARTA TURMA
Número Registro: 1995⁄0049519-8 / REsp 75659/SP
Números Origem: 2127261 92684
PAUTA: 21⁄06⁄2005 - JULGADO: 21⁄06⁄2005
Relator: Exmo. Sr. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR
Presidente da Sessão: Exmo. Sr. Ministro FERNANDO GONÇALVES
Subprocurador-Geral da República: Exmo. Sr. Dr. MÁRIO JOSÉ GISI
Secretária: Bela. CLAUDIA AUSTREGÉSILO DE ATHAYDE BECK