COMENTÁRIOS À PROVA DE SEGUNDA FASE DO MP/SP - 2005
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Prezados Amigos,
O MP/SP surpreendeu na segunda fase... Trouxe questão mais do que pós-moderna. Aliás, a matéria já tinha sido objeto da prova de segunda fase da Procuradoria do Estado de São Paulo.
Vejamos:
Há direito sucessório de pessoa concebida por inseminação artificial post mortem?
A questão seria respondida pelo Enunciado n. 267 do CJF "Art. 1.798: A regra do art. 1.798 do Código Civil deve ser estendida aos embriões formados mediante o uso de técnicas de reprodução assistida, abrangendo, assim, a vocação hereditária da pessoa humana a nascer cujos efeitos patrimoniais se submetem às regras previstas para a petição da herança".
Abraços,
Flávio Tartuce
Vejamos as justificativas do autor do Enunciado, de autoria do renomado Guilherme Calmon Nogueira da Gama, do Rio de Janeiro.
"Diante das novas técnicas de reprodução medicamente assistida, especialmente com a possibilidade de congelamento de embriões na perspectiva da futura transferência para o corpo de uma mulher, bem como no caso da criopreservação de sêmen ou de óvulo para futura utilização, deve ser equacionada a questão acerca da possibilidade da vocação dos embriões congelados - e daqueles resultantes da utilização do material fecundante congelado - na sucessão mortis causa diante da redação do art. 1.798, do novo Código Civil. Não se pode olvidar, a esse respeito, que o projeto do novo Código Civil foi apresentado com texto cuja formulação foi iniciada no final da década de sessenta, época em que ainda eram incipientes as notícias a respeito das técnicas de fertilização in vitro com posterior congelamento de embriões – especialmente os embriões excedentários.
O legislador, ao formular a regra contida no atual art. 1.798, do texto codificado, não atentou para os avanços científicos na área da reprodução humana e, desse modo, adotou o parâmetro do revogado art. 1.718, do Código de 1916, ao se referir apenas às pessoas já concebidas. Deve-se distinguir embrião do nascituro, porquanto este já vem se desenvolvendo durante a gravidez e, assim, é apenas necessária a espera do momento do nascimento para verificar-se se houve (ou não) a aquisição da herança ou do legado. No que tange ao embrião ainda não implantado no corpo humano, ausente a gravidez, a questão se coloca em outro contexto. Deve-se considerar, de acordo com o sistema implantado pelo novo Código Civil, que o embrião não-implantado não pode ser considerado no bojo do art. 1.798, do novo Código Civil, porquanto no sistema jurídico brasileiro é vedada a possibilidade da reprodução assistida post mortem, diante dos princípios da dignidade da (futura) pessoa humana, da igualdade dos filhos em direitos e deveres e, principalmente, do melhor interesse da criança (artigos 226, § 7º, e 227, caput, e § 5º, ambos da Constituição Federal).
O tema relacionado à capacidade para suceder e a reprodução assistida post mortem é dos mais polêmicos e, indubitavelmente, o novo Código Civil não apresenta solução transparente, a despeito da gravidade da questão. A doutrina contemporânea, especialmente à luz do novo Código Civil, apresenta posturas diversas a respeito do assunto. Francisco José Cahali observa que, no sistema jurídico anterior ao novo Código, era inadmissível a constituição de vínculo de parentesco entre a criança gerada e o falecido (cujo material genético fora utilizado) sob o fundamento de que a morte extinguiu a personalidade; contudo, diante da regra do art. 1.597, do novo Código Civil, o autor concluiu, a contragosto, que o filho do falecido, fruto de técnica de reprodução assistida post mortem, terá direito à sucessão como qualquer outro filho, havendo sério problema a ser resolvido quando ocorresse o nascimento da criança depois de já encerrado o inventário e a partilha (ou a adjudicação) dos bens do autor da sucessão. Débora Gozzo, por sua vez, propõe o emprego da analogia para solucionar a questão, no sentido de considerar possível reconhecer o direito sucessório à criança resultante de técnica de reprodução assistida post mortem da mesma maneira que se admite a nomeação de filho eventual de pessoa certa e determinada como possível herdeiro testamentário ou legatário, sugerindo o ajuizamento da ação de petição de herança para tanto. Eduardo de Oliveira Leite, por sua vez, distingue duas situações: a) a do embrião concebido in vitro, com sua implantação posterior ao falecimento do pai e b) a do embrião formado a partir do sêmen preservado (e pode-se, atualmente, também acrescentar o óvulo congelado) depois do falecimento daquele que forneceu o material fecundante. Para o autor, a primeira hipótese autoriza o direito à sucessão hereditária, pois já houve concepção, ao passo que na segunda, não, pois não havia concepção no momento da abertura da sucessão.
Há, pois, variados posicionamentos a respeito do tema, sendo que não há problema antecedente ao próprio Direito das Sucessões, a saber, a admissibilidade jurídica das técnicas de reprodução assistida post mortem no Direito brasileiro. Com fulcro nos valores e princípios constitucionais especialmente relacionados à dignidade da pessoa humana e à efetivação dos direitos humanos e fundamentais também no âmbito das relações privadas, é inegável a vedação do emprego de qualquer das técnicas de reprodução assistida no período pós-falecimento daquele que anteriormente forneceu seu material fecundante e consentiu que o embrião formado ou seu material fosse utilizado para formação de nova pessoa humana. A violação aos princípios da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da futura criança, além da própria circunstância de ocorrer afronta ao princípio da igualdade material entre os filhos sob o prisma (principalmente) das situações jurídicas existenciais, não autoriza a admissibilidade do recurso a tais técnicas científicas. Assim, a questão se coloca no campo da inadmissibilidade, pelo ordenamento jurídico brasileiro, das técnicas de reprodução assistida post mortem. Daí não ser possível sequer a cogitação da capacidade sucessória condicional (ou especial) do embrião congelado ou do futuro embrião (caso fosse utilizado o material fecundante deixado pelo autor da sucessão) por problema de inconstitucionalidade.
No entanto, em sendo reconhecida a admissibilidade jurídica do recurso às técnicas de reprodução assistida post mortem (e, assim, sua constitucionalidade), a melhor solução a respeito do tema é a de considerar que o art. 1.798, do novo Código Civil, disse menos do que queria, devendo o intérprete proceder ao trabalho de estender o preceito para os casos de embriões já formados e aqueles a formar (abrangendo, pois, as duas hipóteses antes indicadas). O problema que surge caso a criança venha a nascer após o término do inventário e da partilha pode ser tranqüilamente solucionado de acordo com o próprio sistema jurídico atual em matéria de herdeiros legítimos preteridos – por exemplo, na hipótese de filho extramatrimonial não reconhecido pelo falecido. Deve-se admitir a petição de herança, com a pretensão deduzida dentro do prazo prescricional de dez anos a contar do falecimento do autor da sucessão, buscando, assim, equilibrar os interesses da pessoa que se desenvolveu a partir do embrião ou do material fecundante do falecido e, simultaneamente, os interesses dos demais herdeiros. Assim, haverá mais uma hipótese de cabimento para os casos de petição de herança, a saber, aquela envolvendo o emprego de técnica de reprodução assistida post mortem.
A capacidade sucessória passiva em geral se aproxima bastante da noção de capacidade de direito (ou de gozo), diferentemente da capacidade testamentária ativa que, como visto, tem maior proximidade com a capacidade de fato. Não há correspondência absoluta, conforme já foi considerado, e a própria inclusão do nascituro no rol daqueles que têm capacidade para suceder confirma a não-coincidência entre capacidade de direito e capacidade para suceder".